Mundial. “Spassiba vam za vse eto!” – Obrigado por tudo isto!

Mundial. “Spassiba vam za vse eto!” – Obrigado por tudo isto!


O Mundial russo, a despeito das dúvidas que se levantaram, é um êxito de organização e participação. A segurança é eficaz, mas mantém-se a uma distância que evita o tom opressivo. O povo vive alegremente todos os jogos e está orgulhoso do que foi feito


Sou suspeito. Amo este país desmesurado e as suas gentes tão desmesuradas, de índoles tão vastas e melancólicas como as suas terras. Eles chamam-lhe “russkaya dusha”: alma russa.

Desde que por cá andei, no ano passado, atrás do futebol e da Taça das Confederações, que serviu de ensaio para esta fase final do campeonato do mundo, que nunca tive a menor dúvida de que a organização posta a funcionar seria exemplar. Tem-no sido. Em todos os aspetos. Na forma como a segurança está sempre presente e, ao mesmo tempo, suficientemente distante para não ser opressiva, na forma com as pessoas se disponibilizam para resolver os problemas, na vontade de serem recetivas, amáveis, educadas.

Muita gente não fala inglês. Muita gente, aliás, não fala nada a não ser russo. É um tema que nunca me encasquinou e já pus os pés em mais de 120 países diferentes do mundo. A exigência tem de ser correlativa. Não exigiria um restaurante gourmet em Djenné, no Mali, essa cidade prodigiosa com a sua catedral de areia, nem que tivesse tido a sorte de a Michelle Pfeiffer aceitar um convite meu para jantar. Tenhamos a noção da vida e das realidades.

James Hilton tem um livro irresistível chamado “Lost Horizon”. Nele, faz esta reflexão: “Sou daquela espécie de homens que pode suportar alegremente os rigores da estrada de Samarcanda mas, para viajar de Londres para Paris, gastaria a minha última nota de dez libras numa passagem no Flecha de Ouro.”

De acordo. Completamente. Seja o Flecha de Ouro ou o velho Foguete que ligava Lisboa ao Porto.

Obrigado! Esforço-me por falar russo. Ignóbil montão de frases a esmo que ainda vêm do tempo das aulas na Rua do Pau de Bandeira e um vocabulário que fui alimentando à medida que cá venho, sempre encantado, sempre disponível, sempre desocupado de preconceitos.

Fiodor Dostoievski tornou-se um dos maiores baluartes da minha estrutura cultural. Foi ele quem escreveu algo que vem a propósito de uma certa capacidade que o homem tem de viajar sem sair do seu casulo: “Basta a certos indivíduos assimilarem uma ideia expressa por outrem, ou lerem qualquer página solta, para imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal, espontaneamente brotada do seu cérebro.”

A Rússia é tão descomedida nas suas virtudes como nos seus defeitos. Teimei em percorrê-la, de Sochi, onde estou, a Sampetersburgo, de Odessa a Chaliabinsk, de Níjni Novgorod a Novosibirsk e ainda mais para leste, para Krasnoiarsk e Naushki. Teimarei em regressar para ir ao gelo de Archangels e aos confins de Kamchatka.

Sinto-me em casa.

E, por isso, este Mundial agrada-me, diverte-me, dá-me vontade de escrever e de me exprimir, de trabalhar, sempre tentando esclarecer e ser útil. Ainda por cima um Mundial de jogos emotivos, cativantes. Um público participativo, que tem enchido por completo os estádios nos quais estive presente, os próprios russos felizes com o que lhes está a ser proporcionado, dispostos a colocarem sobre os ombros cachecóis de Portugal, da França, da Colômbia ou do Japão, e envergarem no dia-a-dia camisolas da Bélgica, da Inglaterra ou do Uruguai. Mesmo que depois se levantem e cantem, solenes, em coro, a meio de qualquer partida: “Slav’sya, Otyechyestvo nashye svobodnoye/ Bratskikh narodov soyuz vyekovoj” – Glória à nossa pátria livre/ Sólida união dos povos irmãos.

Ivan Gontcharov terá sido um dos grandes intérpretes da alma russa. Fez de Oblomov um dos personagens mais sedutores da história da literatura. Ivan Turgueniev descreveu-o assim: “Será sempre lembrado enquanto houver russos, ainda que haja apenas um.” E fez surgir uma palavra nova, o oblovismo: “Indolência russa, preguiça, rotina, indiferença aos problemas sociais.”

Sim, na Rússia, as imperfeições são vastas como as estepes. Ilia Ilitch Oblomov passa a maior parte da sua vida deitado, sem fazer nada. Mas cativa com a autenticidade do seu caráter, a profundidade e a total liberdade interior. É tão íntegro e perfeito como a letra O que se repete três vezes no seu nome. Poeta na vida que é poesia. Vassili Rozanov, escritor e filósofo, garantiu: ‘’É impossível falar dos russos sem mencionar Oblomov… Aquela essência a que chamam ‘alma russa’, ‘natureza russa’, tem nele um dos seus maiores fundamentos.”

A alma que irradia luz.

É assim que a Rússia nos recebe. Como mãe que é. “Spassiba vam za vse eto!” – obrigado por tudo isso.