O Bélgica-Japão, disputado até àquele último segundo em que os belgas decidiram, finalmente, saltar a pés juntos para os quartos-de-final, foi, como diria o meu mestre e amigo Fernando Assis Pacheco, um daqueles jogos do quilé e de provocar comichões no sangue. Ainda por cima garante, desde já, e pelo menos no papel, um dos mais excitantes confrontos da ronda que se segue, frente ao Brasil, na Arena de Kazan, essa cidade encantadora que vive ao ritmo da placidez dos barqueiros do Volga.
Não nego que houve, por parte dos japoneses, uma certa ingenuidade derradeira. Mas, cantaria o Djavan, quanto querer coube naqueles corações. Não bastou para não cair aos pés do vencedor nem deixar de ser o serviçal do samurai mas, vendo bem, eu queria ir mais por outra estrada e recordar aqui a extraordinária primeira vez que belgas e brasileiros se defrontaram, no Estádio do Heysel, no dia 24 de abril de 1963.
Curiosamente, a seleção brasileira, duplamente campeã do mundo (1958 e 1962), tinha jogado três dias antes no Estádio Nacional e perdera frente a Portugal por 0-1, golo de José Augusto, de cabeça. A digressão marcada para a Europa deveria servir para que o grande Brasil de Pelé, Zagallo, Djalma Santos, Zito, Amarildo, Dorval e Pepe enchesse os olhos ao público deste continente antiquíssimo que vai do Atlântico aos Urais, ali mais para nordeste, para quem vira a seguir a Perm e Berezniki.
A exibição da canarinha em Bruxelas acabaria por ser uma das mais encalistrantes da sua história.
Terramoto Pois bem, se a exibição foi indigente, o resultado foi constrangedor: Bélgica, 5 – Brasil, 1. Logo aos 4 minutos, Stockman entrou pela área brasileira com a fúria de um endemoninhado, deixou Mauro nas covas e fez o 1-0. Aos 12 deu cabo da vida ao veterano Djalma Santos e cruzou para Van Himst aumentar. Que belíssimos jogadores eram Stockman e Van Himst!
Os canarinhos estavam condenados a morrer sem cantar numa árvore por nascer.
Não havia sequer uma sombra do campeão do mundo: havia o cadáver pálido e exangue de um Brasil que ficara sem Pelé, por lesão.
Quarentinha, o maior goleador da história do Botafogo, que Armando Nogueira garantia ter uma canhota chamada canhão, de meter medo a qualquer um, desperdiçava dribles e a bola. Uma distração sua, seguida de um passe de Altair para o guarda-redes Gilmar, deu uma lambança: golo contra, três-a-zero. O público delirava. O técnico Aymoré Moreira arrancava a penugem derradeira da sua calvície precoce.
A bola queimava os pés dos brasileiros como um tição. Vinte minutos: é a vez de Mengálvio perder o controlo do lance e Stockman faz o 4-0. Isto tudo em apenas 20 minutos de jogo!
Aos 43, Nicolay, o camisola número 1 da Bélgica, que até aí não tinha sido tido nem achado para os acontecimentos que espreitava lá da sua grande área, com a mão em pala nos supracílios, resolveu dar uma ajuda caridosa: soltou uma bola fácil e Quarentinha, num pontapé acrobático, diminuiu o massacre. Armando Nogueira outra vez: “Quarentinha jamais celebrou um gol, fosse dele ou de quem fosse. Disparava um morteiro, via a rede estufar, dava as costas e tornava ao centro do campo, desanimado como se tivesse perdido o gol.”
Desta vez não perdera o golo, mas perdera o jogo e de que maneira.
A segunda parte não existiu. Ambos estavam contentes com o resultado: a Bélgica pelo numerário, o Brasil por não ter sido pior. Mas foi: aos 55 minutos, novamente Stockman deixou Cláudio nas covas e estabeleceu o inconcebível 5-1.
A vingança canarinha surgiria dois anos mais tarde, em junho de 1965: 5-0 no Maracanã. Nelson Rodrigues exultou: “O ressentimento funda uma nação. Houve o jogo e a mácula dos 1-5 e foi raspada a palha de aço do orgulho nacional. Eu disse que ninguém matou e acrescento – também ninguém morreu. Cada brasileiro, vivo ou morto, do alto da arquibancada ou no fundo de uma cova, torceu ferozmente. No momento em que o Brasil se lavava da desfeita, ninguém era defunto. Em todas as sepulturas, as ossadas, as caveiras, ouviam os seus radilhos de pilha. Eis a verdade – ao sair do estádio, o povo ia reabilitado de todas as suas frustrações.”
Poucas derrotas como a goleada do Heysel doeram tanto no fundo da alma dos adeptos brasileiros. Sentiram-se corridos a pontapé como cachorros vadios.