As noites de Sochi acabam cedo Mas cedo de manhã. Melhor ainda: tarde de manhã, sol já alto no céu a prometer esta humidade confinada entre o mar Negro e as montanhas do Cáucaso, cobertor de papa daqueles que existiam nos baús de casa dos avós.
Encontro pela Rússia dois amigos grandes, ambos Nuno Ribeiro, um Nuno Manuel Soares Pereira Ribeiro, 41 anos já (quem diria?), natural de Amarante e que a malta conhece por Nuno Gomes; o outro Nuno Ricardo Oliveira Ribeiro, 40 anos (irra!), natural de Lisboa e desse castiço bairro da Boavista, a Monsanto.
Sochi é, neste Mundial, cidade de não fumar. Nem na rua. “Niet kurit!” Embora, claro, em lugares como o D.O.M. (Deus Optimus Maximus) haja direito a tudo e a mais dois pares de russas bem mais elegantes que aquilo a que chamávamos botas da tropa.
Junto à marina, ao longo da qual se espalham restaurantes, bares e discotecas a esmo, sob o calor plácido das noites tropicais que, volta e meia, trazem consigo o refresco de umas pinguinhas de chuva, oD.O.M. faz mistura de tudo num só, desde o restaurante na cobertura – onde se janta, e bem, para lá das três e tal da manhã – ao rés-do-chão da cervejaria, entremeados com salas que servem de discoteca e outra que promove o karaoke, que é uma espécie de desporto nacional que se pode comparar ao hóquei no gelo.
Noites brancas Não é apenas em Sampetersburgo que existem noites brancas. Sochi é a capital das noites em branco, gente pelos passeios de mão dada num romantismo quase fora de moda, meninos correndo, prostitutas elegantes que se oferecem numa diversidade extraordinária de preços e serviços.
Não, no D.O.M., o Maniche recusou-se a ir comigo ao palco arranhar o “My Way”, versão Francisco Alberto, com a voz de cana rachada própria de quem faz passar muita cervejinha gelada pelas cordas vocais mais frequentemente do que elas estão dispostas a suportar. Que fazer? O Nuno é tímido, naquela timidez de menino que guarda dentro de si próprio em laivos de ternura. As pessoas reconhecem-no, recordam-se dos seus curtos meses no Dínamo de Moscovo, recordam-se ainda mais da sua importância para Portugal durante o Europeu de 2004 e a fase final do Campeonato do Mundo de 2006. Porque ele não foi importante: foi fundamental!
Sexta-feira em Sochi e não há futebol.
O Mundial interrompeu um dia por causa da final da fase de grupos.
Esperamos, portanto.
Esperamos a tristeza e a saudade, ainda que não saibamos o que nos espera amanhã, no Fisht Arena.
Não sabemos nada sobre a derrota que já se desenha no horizonte em forma de nuvens escuras.
Ah! Choverá sobre nós uma chuva negra.
Num dos bares ouve-se a voz de Caetano Veloso:”Felicidade foi embora/ E a saudade no meu peito ainda mora/ E é por isso que eu gosto lá de fora/ Porque eu sei que a falsidade não vigora.”
Não vigora mesmo.
Não houve falsidade no adeus português ao sossego marítimo de Sochi nem a toda esta Rússia, que nos recebeu com a elegância dos príncipes que bondavam nos romances de Doistoievski como folhas de uma árvore num outono ventoso.
Ficamos na rua a ver os barcos.
A ver navios.
“O pensamento parece uma coisa boa/ Mas como é que a gente voa quando começa a pensar.”
A noite deu lugar a um dia ténue.
“And now/ The end is near/ And so I face/ The final curtain.”
As cortinas do meu quarto estão avariadas, dormirei com o sol que rompe, fagueiro, contente. Não tem mal, aproveito as primeiras luzes do dia em que o futebol regressa a Sochi e nenhum de nós faz ainda a mínima ideia se continuaremos por cá e por quantos mais dias.
Não partiremos para Níjni Novgorod, a cidade dos Velhos Crentes e que se chamou Gorki por causa do escritor Máximo, centro industrial e comercial de grande peso na Rússia moderna. Por mim, fico. Fico à espera dos quartos-de-final que possam, aqui no Fisht Arena, pôr frente a frente Brasil com a Bélgica, naquele que seria um jogo místico e indeslindável deste campeonato do mundo que caminha para o fim a passos.
Fico com a certeza de que, por entre a espuma dos dias, haverá sempre o momento feliz de vos enviar de Sochi uma notícia boa.