Portugal-Uruguai. Dona Celeste e os seus dois bandidos

Portugal-Uruguai. Dona Celeste e os seus dois bandidos


Suarez e Cavani rasgaram a defesa de Portugal a golpes de navalha. A resposta foi bola a mais e agressividade a menos. O costume


Escrevo depois. Isto é, fui ao estádio e vim, sem aquela pressa habitual de mandar o material para Lisboa a tempo do fecho do jornal. Tenho 24 horas completas à minha frente. Será que isso muda a forma como observo os acontecimentos? Será que altera a sensibilidade da minha escrita?

Diria que sim, inevitavelmente. A noite triste de Sochi, marcada pela despedida melancólica da seleção nacional deste Campeonato do Mundo no qual se apresentava de peito enfunado, não apenas por ser a campeã da Europa mas também por poder contar com o melhor jogador do mundo, que prometera à saciedade exibir esse estatuto no jogo de estreia, frente à Espanha, deixou em todos nós uma sensação incompleta de algo que ficou por fazer e que, afinal, estava ao nosso alcance.

Sublinho desde já: não entro no rol dos gemebundos que teimam em ver nos últimos dez minutos da Fisht Arena uma superioridade inequívoca de Portugal sobre o Uruguai. Ando há tempo que chegue a correr o mundo atrás do futebol para ficar seguro de que tudo o que se tentou fazer (e, principalmente, o que o selecionador, Fernando Santos, fez) veio tarde, demasiado tarde, tão serodiamente fatal que não injetou no conjunto as alterações obrigatórias para quem se apresentava com a convicção de ir longe.

Escrevi-o aqui e repito-me: o título conquistado há dois anos, no Estádio de França, não exime Portugal das suas responsabilidades para com os adeptos, para consigo próprio e para com o mundo do grande futebol. Tem sido desde então excessivamente merencório para saber aguentar essas responsabilidades sobre os ombros.

Erros Defender bem é uma virtude, por vezes maravilhosa. E, frente a Portugal, o Uruguai fê-lo de forma notável, ao ponto de estar aqui a fazer um esforço de meninges para me recordar de um momento de verdadeiro aperto para o portero Muslera. A forma como Ronaldo foi fechado num autêntica jaula (os italianos, mestres do jogo defensivo, têm uma expressão para isto: la gabbia), desterrado para os flancos, de onde tentava romper na ânsia do remate distante e devastador, foi sublime. Na zona em que o seu pontapé poderoso costuma fazer a diferença, viu-se sempre rodeado por dois ou três uruguaios e os tiros rechaçavam na parede azul-celeste que se erguia na sua frente. E de uma forma limpa, leal, sem recurso à brutalidade ou à maldade.

Depois, esta Dona Celeste Olímpica, como é conhecida desde 1928, tem dois filhos queridos da vitória, tal como as tropas de Napoleão tinham Massena. Eu diria, sem exagero de ligeireza, que são dois bandidos, de arma no coldre, enlouquecidos como os soldados de Atanasio Aguirre, comandante dos colorados na Guerra do Uruguai. Suarez e Cavani retalharam a defesa lusitana a movimentos afiados de navalha e com dois golpes profundos e encalistados entre a terceira e a quarta costela condenaram-nos ao esvaimento lento, prolongado, pungente.

Não haverá neste Mundial dois pontas–de-lança tão clássicos e mortíferos como eles.

Um Mundial é mesmo assim, põe-nos frente a frente com adversários aos quais não estamos habituados. A seleção nacional viu-se com os pés cheios de espaços. Os sul-americanos fizeram questão de os oferecer gratuitamente e em barda. E Portugal não soube o que fazer com eles. Adrien e João Mário jogavam a um ritmo exasperadoramente lento; Bernardo Silva, encostado à direita, desperdiçava talento numa teimosia estratégica que se percebeu inepta a partir do momento em que teve ordens para jogar no centro; Gonçalo Guedes estava mais perdido do que o filho do Evangelho de São Lucas; Manuel Fernandes não teve direito a mais do que meia dúzia de minutos.

Não, este não será, novamente, o Mundial de Ronaldo. Sim, mais uma vez, a seleção portuguesa sai da competição sem que, em seu redor, haja quem rasgue as vestes de desespero e de saudades. Passou pela Rússia com a melancolia bisonha de um fado de uma nota só.

Os oitavos-de-final frente aos uruguaios protagonizaram apenas uma queda adivinhável, na sequência do que foram exibições simplistas a roçar a pobreza. Partimos de regresso ao país triste não deixando na nossa esteira motivos para que chorem a nossa partida precoce. Um campeonato do mundo é demasiado grande para premiar a mediania. Impiedosamente, fomos castigados por não deixarmos de ter sido o espelho baço da insuficiência.