SOCHI. Parece que, na véspera, Ronaldo terá desafiado um jornalista espanhol dizendo que Portugal iria ganhar o jogo de Sochi. Não sei qual a frase precisa, mas a ideia conheço-a do poema de Gedeão: «Vê moinhos? São moinhos! Vê gigantes? São gigantes!». Entre Sancho Pança e o cavaleiro da Triste Figura há um mundo de olhares diversos. Não querer ver no moinho de Espanha um gigante seria o primeiro passo para jogar cara a cara com uma daquelas equipas que têm por hábito estragar-nos momentos de alegria, como era, indiscutivelmente, o de ontem, na noite quente do Mar Negro. Claro que, sabêmo-lo todos, a Ronaldo não falta desplante e agradecemos-lhe por isso. E foi assim que tudo começou, o moço da Madeira indo por ali fora com o ar agarotado de quem vai apanhar papoilas, finta para a esquerda, penalti, golo, um murro em cheio na cara do tal gigante que estava para ver se seria apenas um moinho.
Ora bem, havia do outro lado uma equipa do quilé, como gostava de dizer o grande Assis Pacheco, e ficámos à coca a ver o que saia dali. Não saiu grande coisa. Troca e retroca, é assim o futebol daquela que em tempos idos tinha o epíteto de A Fúria, o problema é que aquilo entorpece, é emoliente, o adversário vai ficando hipnotizado ou coisa que o valha, quando dá por ele está enfiado numa camisa de onze varas peganhentas, entre um passe e outro arranja-se um espaço, um buraco, salta de lá um Diego Costa, assim à moda daqueles diabretes com molas das caixinhas da infância,de cotovelo afiado, Pepe no chão, e eis-nos empatados outra vez.
Bem cantava o Djavan: «Ela insiste no zero-a-zero e eu quero uma-a-um». Portugal atrapalha-se. O árbitro também. Quezílias aqui e ali mas, por Santiago, era quase indecente que não as houvesse entre portugueses e espanhóis, não se brinca às rivalidades, ainda por cima num Campeonato do Mundo, seja ele na Rússia ou no sopé das montanhas do Pamir. Os acontecimentos decorrem, agora, praticamente em permanência no meio-campo lusitano. A bola ronda, sinistra, a baliza de Rui Patrício, a trave joga a nosso favor e, de súbito, De Gea também. Do pé esquerdo de Ronaldo parecia vir remate frouxo. Mas é golo. Há uma magia única em jogadores assim que não se explica, só se sente. Garcia Lorca chamava-lhe duende. E avisava: «Vou procurar dar-lhes uma lição sobre o espírito oculto da dolorida Espanha». Algo viria mais a propósito? Mas, cuidado, não há que fiar. Mesmo quando o capitão de Portugal tem um poder misterioso que nenhum filósofo sabe descrever.
Desafio apaixonante
Jogo bom, golpe a golpe. Espera-se que a Espanha se revolte contra a injustiça do golo pífio, mas com isso podem bem os portugueses. Voltam a estar nas suas sete quintas, de olho nas manigâncias contrárias, atentos aos espaços que possam aproveitar. Ronaldo é um personagem cativante no meio de todos os que actuam no palco de hora e meia de tantas vidas. Ergue-se, majestoso, parece que vai ganhando centímetros com o decorrer dos minutos. Assusta pela razão simples da presença fulminante.
Há que convir que a maneira amaneirada, sem pejo da aliteração, como os espanhóis tratam a bola tem muito de sabedoria elevada aos píncaros por anos de trabalho. É nesse carrossel que chegam ao empate. Vemo-nos dentro de um desafio apaixonante. Merecia poesia em vez de prosa fagueira. E, no meio da sinfonia dos passes ritmados, a explosão da trombeta do pontapé de Nacho.
Pela primeira vez Portugal está em desvantagem, a Espanha sente-se superior (alguma vez não se sentiu?), é dona do tempo, paira sobre o estádio uma sensação nítida que já não há forma de alterar o que se vai passando. Que fazer contra o destino? Saberá Ronaldo a resposta? Saberá Fernando Santos com a entrada de João Mário e Quaresma? Ficamos à espera. É preciso sair daquela teia rebuscada como se fosse tecida a renda de bilros. É preciso um gesto firme, um raio de luz na noite que escurece sobre os portugueses.
O jogo vai perdendo lucidez. De parte a parte. Seria impossível que tal não acontecesse. Há ainda a aposta final em André Silva, mais de área, menos andarilho do que Gonçalo Guedes. Uma descrença magoada vai-se infiltrando no público que veio lá desse país sempre triste à procura de alegres dias. Calam-se as gargantas minadas pela rouquidão e por aquele golo que veio de longe, lá do outro lado do campo, a bola ensinada no caminho a percorrer, ainda a roçar o poste, mas por dentro. O suave perfume a rosmaninho daquela equipa que teima em ser de todos nós dilui-se no calor quase tropical de Sochi.
E, de repente, há o duende à solta no pé direito de Ronaldo. Um brasileiro a meu lado grita: «Puta que o pariu!». Ah! Deixa-te disso. Bendita mãe que o deu ao mundo. E a nós!