Alguém disse “quantas mais leis tem um país, mais corrupto é”! Apesar do contrassenso a afirmação parece cada vez mais fazer sentido. A fértil imaginação do ser humano permite-lhe manobrar a legislação, é certo e sabido. Mas o problema vai mais longe quando os indivíduos agem em conluio, nestes casos a tarefa é mais árdua para quem tenta fazer cumprir a lei, não para os que a contornam. Pois, de grosso modo percebe-se que a proliferação da corrupção reside, essencialmente, na “teia” que a acolhe.
A presente crónica relata uma possível forma de fraude ao Estado. Tão-somente uma das muitas que existirão, que na grande maioria das vezes ocorrem dentro das próprias instalações do Estado e/ou com a conivência de todos.
Vejamos! O Decreto-lei n.º 142/73 de 31 de março (e respetivas alterações) redige o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, na verdade traduz o regime em vigor da pensão de sobrevivência dos funcionários públicos, com origem num decreto-lei de 1934.
A pensão de sobrevivência consiste, de acordo com a legislação, numa prestação pecuniária mensal, cujo valor é determinado em função da pensão de aposentação. Podendo requerer esta pensão quem, legalmente, seja considerado herdeiro hábil. O art.º 40, capítulo V nomeia os possíveis candidatos à pensão bem como os requisitos a que obedecem.
A requisição desta pensão obedece a alguns pressupostos.
1. Exceto ao cônjuge sobrevivo (a existir), que não carece de prova para a obtenção da referida pensão. Decisão suscetível de levantar questões sobre a validade moral da independência de requisitos. Nomeadamente quando o cônjuge sobrevivo apenas o é legalmente, não efetivamente. Podendo até já existir uma união de facto!
2. Por outro lado, havendo um companheiro(a), o mesmo terá que fazer prova disso. Terá que provar que, “à data do óbito, vivia há mais de 2 anos com a pessoa falecida em situação análoga à dos cônjuges”. Mais concretamente, o art.º 41, n.º2, do mesmo artigo, refere que “o direito à pensão de sobrevivência por parte das pessoas que vivam em união de facto está dependente da prova da existência dessa união…”. A prova desta união tem os seus termos definidos na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (medidas de proteção das uniões de facto).
Assim, para as uniões de facto existe a obrigatoriedade de fazer chegar à CGA os denominados “Meios de Prova”, ou seja, determinados documentos adicionais ao requerimento que façam prova da situação do requerente na vida do aposentado falecido.
Como se pode fazer prova disto?
Dos documentos a apresentar, há uns de fácil acesso, tais como certidão do registo de nascimento, fotocópia do cartão de cidadão do falecido e uma declaração do(a) companheiro(a), sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de 2 anos à data do óbito, e outros que poderão ser mais problemáticos, nomeadamente atestado da junta de freguesia da área de residência.
Para os profissionais de determinadas áreas (e.g. doentes terminais, lares de idosos ou de cuidados paliativos) não será difícil aceder a determinadas informações (e.g. estado civil) dos aposentados e obter determinados documentos.
A maior dificuldade poderá prender-se com o atestado da junta de freguesia. Este visa atestar que o requerente, à data do óbito, vivia há mais de 2 anos com o falecido em situação análoga à dos cônjuges. Sendo que isto será feito com base em prova testemunhal ou em conhecimento pessoal do subscritor do atestado (vulgo presidentes das juntas de freguesia) e nunca apenas pelas declarações do próprio.
Chegando aqui é fácil perceber que a possibilidade de fraude é elevada, permitindo o pedido da pensão de sobrevivência a alguém fora do circuito familiar, bastando que a teia da corrupção se instale:
– Intenção de tirar proveito por parte de quem vai requerer a pensão;
– Existência de falsos testemunhos;
– Conivência do Poder Local (Juntas de Freguesia), mesmo que negligentemente;
– Incúria dos próprios funcionários.
Eventualmente, a qualidade de pensionista pode extinguir-se, de acordo com o Decreto-Lei supracitado, “Pela indignidade do pensionista, resultante do seu comportamento moral, declarada por sentença judicial em ação intentada por qualquer dos herdeiros hábeis”,no art.º 47, n.º 1, e).
Não obstante,não só releva a indignidade do requerente (que tenta tirar proveito após a morte do aposentado), mas também o facto da fraude cometida pelo cidadão ter a conivência do próprio Estado. Levantando a questão sobre competência do Poder Local para intervir eficazmente e atestar com veracidade o que ele próprio desconhece (?).
Muitas questões se podem levantar com esta situação ou outras análogas. Nomeadamente até que ponto deverá ser competência de uma junta de freguesia validar estes atestados? Estará o Poder Local munido de ferramentas para fiscalizar a veracidade destes testemunhos?
De uma forma mais globalista: estará o Poder Local (Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais) munido de mecanismos (e vontade) de fiscalização de ações que possam atentar contar o próprio Estado?
Obviamente não nos é permitido pensar que haverá displicência na tomada de decisões deste âmbito, nas quais o Estado estaria a defraudar-se a si próprio. No entanto, é do conhecimento geral que estas e outras situações são mais frequentes do que todos nós, enquanto contribuintes, gostaríamos que fossem.
Vivemos num país carente de formação ética e princípios, no qual, muitas vezes, tudo é permitido e aceitável. Numa sociedade altamente competitiva, cujos padrões de sucesso se refletem pela exteriorização de sinais de riqueza não é impensável que estes casos existam, que alguém os pratique.
Não seria de todo descabido que os órgãos governativos procurassem investir em formações de conteúdos éticos a título preventivo. Assim houvesse vontade política.