Há muitos anos que a transição espanhola do franquismo para a democracia é citada como exemplo de sucesso. Sem violência, a democracia veio, instalou-se, lavou o rosto de todos os franquistas e transformou a Espanha democrática num exemplo. O país integrou-se na União Europeia, prosperou, as instituições consolidaram-se, principalmente a partir do golpe falhado do tenente-coronel Antonio Tejero.
É sempre mais fácil fazer uma transição se em nenhum momento se afrontam os poderes instituídos ou se exigem contas a quem exerceu por décadas um poder autoritário e cerceador dos direitos, liberdades e garantias. Se não se toca nos ninhos de vespas, podemos até chamar-lhes abelhas e sustentar que agora dão mel.
Colaboradores da ditadura, franquistas, falangistas, perseguidores de republicanos, de anarquistas, de independentistas, de ateus, de poetas e outros artistas, obscurantistas de grande fervor ou por razões mais pragmáticas, industriais e famílias aristocráticas, torturadores, criminosos de guerra e de Estado, militares, Igreja, de um dia para o outro transformaram-se, passaram pelo túnel da transição pacífica, e do outro lado saíram democratas prontos a estrear. Os quase 43 anos da Espanha pós-Franco e os 40 anos que a Constituição cumpre este ano, em dezembro, não erradicaram essa espinha franquista porque nunca ninguém a operou.
Os crimes contra a humanidade foram silenciados a bem da pacificação da sociedade. Vidas destruídas, sonhos apagados, pensamentos arrancados, dor infligida, exílios, morte. Tudo se apagou para aproveitar a mesma folha e escrever as novas histórias democráticas. Essa transição cúmplice, sem um tiro, tapou todos os buracos feitos pelas armas franquistas.
O franquismo não desapareceu, vestiu outras roupas, chamou a si o poder e governa alcandorado na varanda da democracia. Durante anos, porque parecia mal, escondeu o coração falangista, o fascismo que lhe veste a alma e, de roupagens conservadoras, agindo de maneira reacionária mas controlando os laivos autoritários, deu de si a imagem de democrata.
O modernismo de que se quis vestir para o séc. xxi despe-o agora nesta contraofensiva das forças conservadoras, nesta tendência de contrarreforma que se generaliza mundo fora, numa reação dos setores mais retrógrados aos progressos sociais do séc. xx. Em tempos acelerados de individualismo exacerbado, a trilogia Deus, pátria, família volta a ecoar, sem vergonha de se assumir em pleno dia.
A censura da obra de Santiago Sierra na ARCOMadrid é tão-somente o mais recente exemplo de uma sociedade que faz recair sobre a liberdade de expressão limites que são políticos, seus.
Condenar o rapper Valtònyc a três anos e meio de prisão por difamar a coroa, incentivar ao terrorismo e ameaçar políticos através das letras das suas canções é sinal de que os limites à liberdade de expressão estão a tornar-se cada vez mais restritos e perigosos.
Prender ou obrigar ao exílio políticos independentistas catalães, socorrer-se de um artigo da Constituição a que nunca fora preciso recorrer em democracia para suspender as instituições na Catalunha, recorrer à força da polícia sem nunca, por uma vez, intentar o diálogo, ouvir, estabelecer pontes, encontrar soluções, como seria apanágio da democracia – tudo isso são sinais fortes de que franquistas, falangistas, militaristas, nacionalistas católicos, carlistas, juanistas, juancarlistas e outros espíritos pouco democráticos estão a sair do armário onde a naftalina os tem mantido a comandar na sombra, à espera de sair de cara ao sol.
As piadas que a jovem Cassandra V. contou sobre Carrero Blanco – o delfim de Franco que a ETA assassinou em 1973 – valeram-lhe uma condenação a um ano de prisão em 2017; o ano passado, um jovem de 24 anos fez uma fotomontagem do seu rosto na cara de Jesus Cristo e foi condenado a 480 euros de multa. Os exemplos vão-se multiplicando, o peso da lei como bota pisando a liberdade de expressão e o sentido de humor. A censura está viva e é preocupante.
A fragilidade da democracia está no seu caráter democrático, passe o pleonasmo – abre a porta a todos e permite o mesmo espaço aos que a abraçam com fervor e aos que a vituperam a cada momento e conspiram para a derrubar. Não há melhor localização para a destruir que a partir de dentro, porque enquanto pensamos que as instituições democráticas funcionam como deviam, com o seu sistema de equilíbrios e controlos, alguém as utiliza para a aniquilar. E quando a União Europeia prefere olhar para o lado e não ver, dentro das suas fronteiras, como os projetos autoritários estão a tomar conta das nações que a conformam – não só a Espanha, mas a Hungria, a Polónia, a República Checa, a Áustria – cabe-nos a nós estar atentos, gritar, lançar piadas contra Carrero Blanco ou Marcelo Caetano, e quanto mais ácidas melhor, criar obras de arte com presos políticos, ser justos ou injustos nas críticas contra os governos e as instituições. O poder aguenta as nossas pequenas ferroadas, por mais arbitrárias que sejam. Nós é que não aguentamos a arbitrariedade do poder.