Anna Muzychuk. Dois títulos por uma abaya

Anna Muzychuk. Dois títulos por uma abaya


A campeã de xadrez em título, Anna Muzychuk deveria estar, por estes dias, a defender as medalhas no campeonato no mundo, na Arábia Saudita


Aos dois anos, espera-se que uma criança ande, com mais ou menos tropeções, que interaja suficientemente bem e, independentemente do nível de desenvolvimento, que fale. Aos dois anos, a ucraniana Anna Muzychuk fazia todas estas coisas enquanto aprendia a jogar xadrez. Filha de dois treinadores profissionais da modalidade, Anna participou no seu primeiro torneio aos cinco anos – seguiu-se uma carreira fulgurante, recheada de títulos e vivida ao lado da irmã mais nova, Mariya, com quem partilha os tabuleiros.

Hoje, aos 27, Anna saltou para as páginas dos jornais, não por ter ganho mais um campeonato, antes exatamente pelo oposto: por ter perdido os dois títulos conquistados há um ano, o World Rapid and Blitz Championships 2017 e o Women’s World Rapid and Blitz Championships 2017 após se ter recusado, por princípios de liberdade, a participar no campeonato mundial que este ano decorre na Arábia Saudita. Devido aos costumes do país, as jogadoras em competição (o campeonato começou na terça-feira (26) e termina no próximo sábado, a 30 de dezembro) são obrigadas a usar o traje definido pela organização e a andar acompanhadas na rua. 

Através de um texto publicado no Facebook no sábado passado, Anna explicou a decisão. “Dentro de alguns dias vou perder dois títulos mundiais – um por um. Só porque decidi não ir à Arábia Saudita. Não jogar mediante regras de outros, não vestir uma abaya [a veste tradicional que as sauditas estão obrigadas a vestir fora de casa], não ser acompanhada na rua, e não me sentir uma criatura secundária”, escreveu a ainda campeã de xadrez em título num post partilhado milhares de vezes.

 “Exatamente há um ano ganhava estes dois títulos e era a pessoa mais feliz do mundo do xadrez mas desta vez sinto-me mesmo triste. Estou pronta para lutar pelos meus princípios e não ir ao evento onde eu iria, provavelmente, ganhar mais dinheiro do que o que ganho numa dúzia de eventos. Tudo isto é perturbador, mas o que mais me preocupa é que ninguém se importa. Este é um sentimento amargo, mesmo assim não vou mudar a minha opinião e os meus princípios”.
Também Mariya se recusou a viajar até à Arábia Saudita e a participar no campeonato. “O mesmo aplica-se à minha irmã Mariya – e estou muito contente que partilhemos o mesmo ponto de vista. E, sim, para os poucos que se importam – nós vamos voltar!”, terminou Anna.

Não é a primeira vez que os locais escolhidos para a realização das competições de xadrez causam desconforto entre as participantes. Ainda em fevereiro deste ano, durante um campeonato no Irão, Anna foi obrigada a cobrir a cabeça com o hijab. E já nessa altura houve uma desistência: a campeã dos EUA, Nazi Paikidze-Barnes, recusou-se a usar o véu islâmico. Segundo o britânico “Guardian”, o governo saudita terá pago 1,5 milhões de dólares – cerca de 1.2 milhões de euros – para receber, pela primeira vez, o campeonato. A FIDE (Federação Internacional de Xadrez), responsável pelo evento, ainda tentou negociar com o governo uma espécie de uniformes para as participantes: blusas brancas sem decote e calças escuras em vez das abayas. O que, como se vê pela decisão da campeão, não chegou.