O cair da folha do calendário obriga a balanços do ano, à eleição de figuras e à escolha de palavras que sintetizem a história de 2017. O ano finda com a industrialização dos afectos.
Os dois anos de geringonça terminam com a mutação do sistema de governo em semi-presidencialismo dos afectos. O Presidente da República tornou-se o vértice mais poderoso do triângulo político, não só porque essa é a situação normal quando existe um Governo minoritário, em contínua negociação de apoios parlamentares, mas também porque no semi-presidencialismo dos afectos manda quem chora ou, no mínimo, quem ouve chorar e convida ao choro. No pior momento da relação entre o PR e o PM, o descasca pessegueiro presidencial não se dirigiu contra a incompetência mas contra essa odiosa característica no governante moderno, a “frieza”.
Instituído o semi-presidencialismo dos afectos, não espanta que a disputa da liderança no maior partido da oposição se trave entre um apóstolo dos afectos e um candidato dito “frio”, com completo menosprezo de programas, projectos ou ideias que pudessem distrair os putativos eleitores da inclinação (ou falta dela) que devam sentir pelos candidatos. Por junto sabe-se que o Presidente dos afectos não gosta do candidato a líder do PSD que se diz possuído pela afeição e que o candidato dito “frio” terá uma forte afeição por um entendimento com o Primeiro Ministro acusado de frieza. O ciúme de um, a inveja de outro, a cobiça do terceiro, todos unidos pelos afectos. Convenhamos que se este enredo bastaria para alimentar duas temporadas de uma telenovela mexicana, parece ser um tudo nada curto para garantir uma governação capaz.
A indústria dos afectos atingiu o apogeu na comunicação social, com as televisões líderes de audiências a tostarem a informação na grelha da emoção. A televisão emocional não informa, comove, não esclarece, desperta emoções, não contrapõe opiniões, grita uma visão unívoca. A televisão emocional não se pode dar ao luxo de informar, antes promove dramatizações de “investigações jornalísticas” servidas à fatia com episódios que duram horas infinitas e onde não se lobriga um contraponto de opinião ou um ouvir dos “acusados”. A banda sonora lamechas, as imagens desfocadas das recriações de cenas reais que não são apresentadas como recriações, tudo conduz para um juízo liminar. É simples, é simplista, é eficaz, traz audiências e, claro, é perigoso.
A televisão emocional substituiu-se à realidade e na sua omnipotência faz-nos pensar que feita a expiação televisiva do “mal” tudo está resolvido. Erro. A catarse televisiva não garante o regular funcionamento das instituições, desde logo as governativas, administrativas e judiciais. O cursus honorum dos governantes passou a incluir vários anos de residência televisiva como percurso obrigado. E o maior erro que os titulares dos órgãos de soberania podem cometer é o de perpetuar esta orgia de afectos, vivendo da e para a televisão emocional.
A industrialização dos afectos auto-justifica-se e perpetua a impossibilidade de resolver os problemas que deram origem aos estados emocionais, ao pathos que as televisões divulgam num primeiro momento e, de seguida, reproduzem mecanicamente. A indústria dos afectos vicia os telespectadores, os eleitores, os cidadãos, distribui doses cavalares e renovadas de afectos. Mas não quer que os viciados se distraiam e se encaminhem para a acção. Se os “afectados” agissem, a industria dos afectos entraria em perda.
Quem não chora não mama. Mas de tanto chorar há quem se esqueça da utilidade do choro.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990