Em 2003, o primeiro “piroverão” (para usar a expressão feliz do prof. Jorge Paiva) atingiu duramente Portugal. Quase meio milhão de hectares de território ardido e 18 vítimas mortais sacudiram as pessoas e desencadearam uma onda de solidariedade única.
O governo de então decidiu agir com urgência e em profundidade, e foi anunciada uma reforma; registou-se, porém, um facto digno de nota: o ministro da Agricultura da época assumiu as responsabilidades do seu setor e defendeu pessoalmente, pedagogicamente e com vigor as medidas da que foi chamada “Reforma Estrutural do Setor Florestal”.
Isso custou-lhe ataques pessoais e políticos e até uma minimanifestação de uma dúzia de bombeiros, mandados para a porta do ministério empunhando alfaias de combate a fogos florestais (pás, picaretas e abafadores de vários tipos – alguns novinhos em folha!), depois de ter dito numa comissão parlamentar que os bombeiros ainda não sabiam combater eficazmente os fogos florestais e que precisavam de mais formação…
Em menos de nove meses (entre outubro de 2003 e julho de 2004), o Ministério da Agricultura definiu e concertou uma estratégia para transformar aquela calamidade numa oportunidade. De 19 iniciativas de fundo, apenas não foram publicadas cinco.
Tudo parecia no bom caminho… Mas o que se passou nos 15 anos seguintes? Factos e pessoas merecem ser recordados para se perceber o que está a dar frutos (podres) agora:
– Antes da discussão e eventual aprovação dos diplomas da reforma estrutural apareceram dois inesperados opositores: i) a direção da CAP, considerando que muitas das medidas que se preparavam eram “estatizantes e coletivistas” e punham em causa o “direito da propriedade privada”; ii) a Associação Nacional dos Municípios Portugueses, que deu pareceres negativos a todas as propostas de diplomas, com o argumento de que não eram dados aos autarcas meios suficientes para cumprirem as tarefas que a reforma estrutural lhes atribuía.
– A direção da ANMP ameaçou mesmo o primeiro-ministro de que, se não tivessem a garantia de mais dinheiro, os autarcas abandonariam a sala onde se iria inaugurar o congresso da ANMP quando o PM entrasse para proferir o discurso de abertura!
– O pioneiro e então recém-aprovado Fundo Florestal Permanente – que se propôs recolher anualmente (e recolheu) cerca de 30 milhões de euros para apoiar as ações de gestão dos proprietários florestais privados que se revelassem desejáveis mas economicamente inviáveis – sofreu logo aí o seu primeiro “saque” ao ver “voar” para as autarquias um terço (!) desse valor. Muitos outros “saques” se lhe seguiram, desde a ordem para comprar com esse dinheiro 19 milhões de euros de dívida pública ao uso do fundo para financiar os sapadores florestais – que eram até aí pagos pelo OE –, acabando, até ver, na recentíssima proposta de Orçamento para 2018 onde se prevê novo “saque” (autorizações de transferência para organismos públicos), agora da totalidade do dinheiro do Fundo Florestal Permanente, com vista a poupar no Orçamento (e na dívida).
– Num ambiente de tensão de política interna (fraturas dentro do partido do governo) e de oposição tenaz do PS a toda a reforma (sob a liderança do atual ministro da Agricultura, votou contra todos os diplomas propostos), merece registo o posicionamento da ministra das Finanças então em funções.
– Manuela Ferreira Leite – que geria com mão de ferro as despesas e as receitas públicas – percebeu e aceitou o princípio da criação de benefícios fiscais para uma gestão florestal profissional e ativa e iniciaram-se trabalhos conjuntos entre os ministérios da Agricultura e das Finanças, dando ela própria cobertura à iniciativa do ministro da Agricultura, que negociara pessoalmente com a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo a disponibilização imediata de vultosas somas necessárias para acorrer às vítimas e aos prejuízos;
– O governo cai no verão de 2004 (com a saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia) e a causa da reforma estrutural sofre a sua primeira e seriíssima derrota: o ministro das Finanças do novo governo (de Santana Lopes) decreta o fim cego dos incentivos fiscais;
– O governo dura pouco e, após eleições, o PS chega ao poder. O novo diretor-geral das Florestas propõe, e o ministro da Agricultura faz aprovar, por evidente despeito pessoal e político, a revogação do diploma que instituía o primeiro Sistema Nacional de Prevenção e Proteção da Floresta contra Incêndios (DL 156/2004) com o argumento que aquele tinha “erros” (nunca explicitados);
– A “rebombeirização” da política florestal (depois do honroso consulado do atual primeiro-ministro enquanto ministro da Administração Interna, que procurou o início da profissionalização do combate aos fogos) foi então retomada e ganhou dimensões incompreensíveis pela mão do ministro da Administração Interna do xix Governo Constitucional, após a eleição do novo presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Os aumentos de apoios às associações dos bombeiros atingiram 50% no subsídio aos combustíveis e 10% na remuneração do pessoal envolvido, tudo isto num período em que o país sofreu o maior aumento de impostos de que há memória;
– Ao longo de todo este período, tudólogos e fazedores de opinião foram espalhando a ideia de que, afinal, os fogos eram/são mera culpa dos eucaliptos, dos pinheiros, do SIRESP, do raio, do comandante da Proteção Civil e da ministra da Administração Interna! Todos eles terão a sua quota-parte, mas dos figurões instalados que destruíram e/ou inviabilizaram uma reforma estrutural necessária há 15 anos… nem se ouve falar!
Só um exemplo: um jornalista que era (é?) dono de uma empresa que tinha o exclusivo do único programa ambiental da televisão pública escreveu, em agosto de 2013, que “cada folha de papel exportado por Portugal leva um pedaço de bombeiro morto lá dentro” (cito de cor). Acontece que este “formador independente de opinião” é hoje o diretor de programas da televisão pública…
Os descarados que atiraram as pedras contra uma Reforma Estrutural do Setor Florestal séria e estável, bem como os que as atiram agora contra a floresta e a organização que temos, são os mesmos que mostram a cara mas escondem a mão. Têm nome mas não têm vergonha!
(*) Em memória e homenagem ao antigo ministro da Agricultura eng.º Armando Sevinate Pinto, de quem me orgulho de ter sido “ajudante” (expressão do antigo primeiro-ministro Cavaco Silva) em 2003 e 2004.
Ex-secretário de Estado das Florestas do XV Governo Constitucional