Uma coisa chamada Autoridade de Seguros


Num tempo próximo teremos levas enormes de lesados devido à falta de verificação relativa ao comércio digital de seguros. Nessa altura vamos constatar que a ASF não está preparada para os tempos em que vivemos


Durante quase uma década, o Instituto de Seguros era conhecido como a “casa de Rui Carp”. Parece estranha a consideração, mas sempre que, no universo das entidades reguladoras se perguntava quem estava na administração dos Seguros, a resposta era sempre a mesma “Rui Carp e mais três”.

O Instituto de Seguros de Portugal, hoje com a nome pomposo de Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, sempre foi um ente esquisito, uma realidade muito própria que, mesmo tendo edifícios moderníssimos, cheirava a mofo pelos procedimentos, leituras e visões internos.

Na luta permanente entre Banco de Portugal e Comissão de Mercados, a ASF é uma espécie de parente tonto que não sabe qual o seu papel, que caminho deve seguir, que obrigações deve conter. Mas seria muito importante que os portugueses olhassem melhor para quem deveria acompanhar a atividade seguradora e se limita encrencar os operadores.

Quando se olha para o estatuto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões há duas perguntas que nos surgem. A primeira é a que nos inquire sobre a vantagem de ter um regulador/supervisor para atividades que são típicas da administração direta do Estado; a segunda é a que mantém, fora do banco de Portugal a leitura integral da atividade dos Fundos de Pensões.

Já dissemos que os Fundos de Pensões estão na ASF porque o banco central não quer trabalho. Em boa verdade, quando se iniciou o processo de consagração dos regimes jurídicos dos fundos, nas suas ligações entre várias atividades e grupos, o que teria feito sentido, como se provou na recente desgraça com que se exportou o poder de decisão das grandes seguradoras portuguesas para mãos de entes externos, era uma palavra decisiva e única do banco central.

A atividade tradicional de seguros é, em muitos países da Europa, da responsabilidade de uma estrutura inserida nas administrações direta ou indireta. Em Portugal, quando olhamos para o “estatuto” da ASF não encontramos, na vertente seguros (que o site institucional bem separa), qualquer razão para conceder o estatuto de regulador/supervisor ao nado público existente.

O Plano Estratégico da ASF, que vigorará até 2018, é bem claro sobre essa desconsideração. Os primeiros dois objetivos que integram a verificação dos padrões de governação, transparência e solidez dos operadores e os padrões de conduta, apesar de a sua concretização ser por via postal ou indireta, não implicam quadros de valor reforçado, agentes de elevado padrão salarial. Estas são tontices habituais na forma de agir autofágica que se constata.

Outros três objetivos, onde se encaixam as análises de risco e estabilidade do setor; a transposição dos regimes jurídicos comunitários e a sua verificação; e a iliteracia financeira e proteção dos consumidores, não nos dizem que a ASF seja detentora de um capital relevante diferente de outras direções-gerais.

Outros três objetivos simbolizam o quão atávica está a ASF. Diz-nos, em letras compridas como gasta o tempo da estrutura com a cooperação interinstitucional e como se fixa desmesuradamente nas velhas questões do pessoal, dos salários, dos orçamentos e dos gastos internos. Quão pobres estão estes reguladores…

Poder-se-á perguntar se não há nada de relevante que possa justificar o ente regulador. Há, com toda a certeza em duas variáveis. Uma primeira que resulta de uma obrigação direta e outra que resulta da função primordial.

O objetivo que elege o regime Solvência II é tipicamente uma atividade regulatória pura. Mas a administração da ASF só lhe entrega três obrigações – participar nos trabalhos da Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma; assegurar junto da EIOPA o cumprimento das obrigações e orientações europeias e adotar internamente a regulamentação. É, por isso, que dizemos que, também aqui a ASF submergiu na mediocridade.

A leitura dos relatórios de atividades da ASF não convence sobre o bom cumprimento do que acima se disse. Mais, trata-se tão só e para já, de uma réplica burocrática. Ora, está aqui uma parte da credibilidade do setor em tempos próximos.

A função primordial que referi é a que se liga à opção pelo silêncio do regulador perante a alienação de participações públicas, diretas ou indiretas, no setor segurador e a venda o desbarato de património perante a decadência dos grupos financeiros portugueses.

Quem quiser entender qual foi o papel do regulador na transferência de titularidade das companhias Fidelidade e Tranquilidade nunca irá chegar a bom porto. Ora, a consagração do estatuto de independência, de avaliação, de alerta e defesa do interesse público deveria ter obrigado a ASF a pronunciar-se sobre o que trouxe as companhias, estas e outras, para a situação crítica em que se encontravam; para a realidade futura da sustentabilidade do setor; para a avaliação da qualidade dos investidores e o seu perfil de negócio; para a realidade da atividade seguradora nos setores económicos; para as lateralidades na rede. Nada disto foi feito com atenção, profundidade e autonomia. Negou-se o regulador e, por isso, também se deve negar o seu estatuto atual.

A inexistência de pensamento crítico com que este regulador interveio (se podermos chegar ao verbo intervir) na elaboração do regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora – RJASR (Lei n. º 147/2015, de 9 de Setembro), cuja ausência de regulamentação sobre a prestação de serviços por seguradoras de outros Estados-Membros da UE se mantém até hoje, apesar de Portugal integrar o mercado interno da UE (sem fronteiras aos negócios) é outro dos falhanços dos burocratas de Entrecampos.

A atividade de supervisão que é exercida por muitas entidades das administrações públicas direta e indireta levou a ASF a consagrar o lado mais perverso desta. Não há entidade que desenvolva a sua atividade no universo segurador que não se exaure nas obrigações burocráticas, nos reportes, nas respostas, nas estatísticas. Mas para que serve tanto papel e tanto template? Para justificar os exércitos de agentes públicos principescamente pagos, para exigir junto do Orçamento mais recursos através de taxas, coimas, receitas sobre os operadores? Ninguém obriga esta gente à reinvenção de processos?

Desde a disponibilização online do portal de matrículas com seguro automóvel válido que não se conhece publicamente qualquer iniciativa que tenha contribuído para o setor, para a segurança dos consumidores, e para a promoção do investimento neste domínio em Portugal. Desde a guerra que, no início deste século, foi feita para que os seguros fossem legíveis para os subscritores que nada de determinante se conheceu. Passou demasiado tempo para se suceder uma “mão cheia de nada”.

Há ainda uma área em que a ASF está na pré-história – o enquadramento do comércio digital de seguros e a sua verificação permanente. Até agora tudo se limita a uma confirmação “olheira”, mas o que vai acontecer, num tempo próximo, é a uma desgraça em que teremos levas enormes de lesados. Nessa altura vamos constatar que a ASF era, há muito, uma “besta” das batalhas ancestrais, completamente insuportável e impreparada para os tempos em que vivemos.

Há desafios que a ASF vai enfrentar: o papel das seguradoras na digitalização da economia; a crescente liberalização mundial da prestação de serviços de seguros e a necessidade de reforçar o papel dos seguros na melhoria do acesso ao financiamento das empresas. E sobre tudo isto a estratégia da ASF é “népia”…

Deputado do Partido Socialista