Até agora, a aposta de António Costa em formar governo com o apoio da extrema-esquerda parlamentar tinha–se revelado um enorme sucesso. No parlamento, esses partidos nunca vacilaram no seu apoio ao governo, que em contrapartida os presenteou com a aceitação de medidas radicais de efeitos desastrosos, como o regresso ao congelamento de rendas ou o imposto Mortágua. Por seu lado, Marcelo Rebelo de Sousa abstinha-se de exercer o que quer que se parecesse com um freio ou contrapeso, nunca suscitando sequer a intervenção do Tribunal Constitucional. António Costa conseguia, assim, ter um controlo absoluto do Estado sem ter vencido as eleições.
E esse controlo estendeu-se mesmo à própria sociedade. O PCP paralisou completamente as tradicionais reivindicações sindicais, que constituíam uma dor de cabeça para qualquer governo, e o Bloco também assegurou o apoio das redacções de jornais em que tem influência. O governo não apenas dispunha do apoio de uma maioria e de um Presidente como gozava ainda de uma paz política e social sem precedentes, por muitas asneiras que fizesse. Foi assim que graves descoordenações, como a morte de 65 pessoas num incêndio florestal ou um roubo de material de guerra, passaram praticamente incólumes na imprensa, enquanto uma simples subida do rating da dívida era objecto de manchetes eufóricas.
Mas começam agora a surgir os primeiros sinais de falhanço desta solução de governo. Os partidos da extrema-esquerda perceberam que só o PS é que está a capitalizar os bons resultados na área económica e que, no futuro, pode já não precisar deles. Por isso o discurso do Bloco está a tornar-se cada vez mais radical nessa área, exigindo agora o fim das cativações orçamentais e até o fim das tributações autónomas no IRS, o que seria altamente penalizador para o sector financeiro e para o sector imobiliário. Por outro lado, a paralisação dos sindicatos afectos ao PCP está a revelar-se desastrosa para a sua influência no mundo laboral. Foi o que se viu na greve dos enfermeiros, que teve 90% de adesão mesmo com o sindicato afecto ao PCP de fora. O governo bem tentou dar a mão ao PCP negociando exclusivamente com o seu sindicato, mas este percebeu que seria trucidado na classe, marcando logo a seguir uma nova greve.
É assim evidente que o PCP e o Bloco começam a sentir-se como os parceiros enganados neste negócio. Por isso, tanto Jerónimo de Sousa como Catarina Martins vieram agora dizer que a geringonça foi uma solução excepcional que não se repetirá. O objectivo destas declarações é claro. Ambos tentam evitar que o seu eleitorado os veja apenas como dois partidos no bolso de António Costa, caso em que, obviamente, fugirá para prados mais verdejantes. Ninguém irá votar em dois PEV’s do PS e há muitos partidos de extrema–esquerda dispostos a capitalizar a irrelevância destes dois.
É por isso as eleições autárquicas serão decisivas. Se estas derem uma vitória estrondosa ao PS, com o PCP a perder influência nas autarquias e o Bloco aí continuar reduzido à nulidade que sempre foi, é manifesto que o apoio destes dois partidos ao governo pode ficar em risco. E, aí, ou os partidos do centro-direita lhe estendem a mão ou as eleições antecipadas serão inevitáveis. A geringonça está pela primeira vez numa encruzilhada, sem saber que caminho vai seguir.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Escreve à terça-feira, sem adopção, das regras do acordo ortográfico de 1990