Cipriano Justo. “O ministro da Saúde tem de ser  o provedor do doente,  não de Bruxelas”

Cipriano Justo. “O ministro da Saúde tem de ser o provedor do doente, não de Bruxelas”


O médico lidera o movimento que se formou à esquerda para contestar a política de saúde seguida pelo governo. E é por acreditarem na atual solução política que prometem continuar a levantar ondas


Lidera o primeiro sobressalto à esquerda na política seguida pelo governo, com uma sucessão de cartas ao PS a apresentar um diagnóstico dos problemas de saúde dos portugueses e propostas para pôr, de uma vez por todas, a promoção da saúde na agenda e no terreno. Cipriano Justo, antigo militante do PCP e fundador da Associação Renovação Comunista, admite que, se fosse hoje, tendo sido possível um acordo que pela primeira vez aliou comunistas e socialistas, não tinha motivos para abandonar o partido. Uma das razões para sair numa das grandes debandadas do PCP, no ano 2000, foi defender que deviam fazer parte da solução, e não apenas da oposição. O movimento que promete continuar a levantar ondas tem um núcleo duro de 25 pessoas. Algumas conhecem-se desde os corredores da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde o reitor até conseguia enxotar a PIDE. Mas isso já são desvios de uma conversa que começa pela atual frente de contestação ao rumo seguido por Adalberto Campos Fernandes.

O que vos move?

Para pôr as coisas em contexto, começo por dizer algo que digo aos meus alunos. A regra é sermos saudáveis e a exceção é estarmos doentes. E as pessoas preferem ser saudáveis a estarem doentes. Partindo desta premissa, os sistemas de saúde, sobretudo os ocidentais, organizaram-se quase exclusivamente em torno da resposta à doença, de ajudar as pessoas a fugirem da morte, e não a viverem melhor. Houve uma construção do sistema em torno da biomedicina, o lado mais curativo.

Aquilo a que na gíria se costuma chamar o sistema hospitalocêntrico.

E com ganhos evidentes no aumento da esperança de vida. O problema é que não é só a biomedicina que explica o aumento da esperança de vida. Curiosamente, a primeira personalidade que abordou este fenómeno foi Marc Lalonde, ministro da Saúde daquele célebre primeiro-ministro canadiano Pierre Trudeau, avô de Justin Trudeau. Lalonde publicou no dia 25 de abril de 1974 – estávamos nós aqui a fazer a revolução – um celebre relatório sobre a saúde dos canadianos onde conclui que não iam lá com o modelo biomédico, porque a saúde de uma população é explicada por quatro pilares: a genética, os estilos de vida, o ambiente natural e social e os serviços de saúde. Há uma relação sistémica entre estes quatro pilares. A reforma do sistema de saúde canadiano acaba por ser feita segundo esta lógica. 

E conseguem mesmo pôr as outras dimensões na agenda?

Obviamente que houve dificuldades porque é difícil mudar um paradigma cultural, mas ele esteve anos suficientes como ministro da Saúde para o fazer. E, hoje, o Canadá tem dos melhores sistemas de saúde, com uma abordagem muito mais intersetorial. 

Propõem a criação de estruturas locais de saúde que juntem os agentes da saúde mas também escolas, segurança social, forças de segurança. É uma lógica então com 40 anos?

Exatamente. Quem avançou depois um pouco mais foram os países nórdicos. Integraram as autarquias e as escolas no modelo de saúde. Aconteceu, por exemplo, na Suécia: o principal responsável das estruturas locais de saúde são as autarquias, embora não dirijam os serviços, mas comanda-se a esse nível.

Em Portugal, a proposta de descentralização não vai nesse caminho?

Podia ir, mas a ideia do governo ainda está indefinida. Uma coisa é cada um fazer umas coisinhas que dificilmente se articulam, outra coisa é haver uma integração.

Como se iniciava essa reforma?

Durante o mandato da ministra Maria de Belém houve um decreto-lei que visava criar os sistemas locais de saúde, um embrião deste sistema de saúde visto de baixo para cima. Haveria uma coordenação conjunta de hospitais, centros de saúde e autarquias.

Surgiu na altura a primeira unidade local de saúde (ULS), modelo que junta na mesma administração o hospital e os centros de saúde da zona.

Mas isso já foi uma perversão, só reforçou o modelo biomédico. Na prática, nas ULS colocaram-se os centros de saúde a “trabalhar” para os hospitais. Quer queiramos quer não, postas as coisas assim, entre hospitais e centros de saúde, o poder está sempre nos hospitais. 

É mais prestigiante ainda o hospital do que o centro de saúde?

Essa é a imagem social e não podemos dissociar essa perceção dos resultados em saúde, o que acaba por ser parte do problema. Não é por acaso que as pessoas vão às urgências hospitalares e não vão aos centros de saúde, isto em situações mais ou menos não programadas. Vão às urgências porque a imagem de solução de problemas nos hospitais é maior, a imagem dos médicos é maior. No hospital sabe-se que há maior probabilidade de resolver o problema, e é isso que temos de inverter. Com as ULS pode ter havido alguns ganhos de eficiência, mas não houve ganhos em saúde, que era o lema de Maria de Belém. E são esses ganhos que perseguimos, uma esperança de vida saudável…

É um dos pontos do vosso diagnóstico: estamos na cauda da Europa em termos de anos de vida saudável.

Hoje só 70% da esperança de vida à nascença é saudável e quando chegamos aos 65 anos baixa para 30%, o que é inenarrável. Não temos ninguém na família que aos 65 anos anos não tenha isto, aquilo e aqueloutro.

O que aceitamos como sendo o normal quando, noutros países, as pessoas vivem mais anos sem doença.

É a cultura dominante e que acaba por ser perpetuada pelo modelo. As pessoas aceitam culturalmente ser doentes porque sabem que existem organizações, instituições, tecnologias e conhecimentos para resolver esses problemas. Há uma aceitação resignada, mas que nos deve fazer pensar. Há 20 anos, em 1996, tínhamos uma esperança de vida de 65 anos e 90% era saudável. Em 2016 temos uma esperança de vida de 80 anos e só 70% é saudável – houve uma regressão e não foram tomadas medidas no sentido de promover um estilo de vida mais saudável, condições para as pessoas comerem melhor, serem menos sedentárias, o que noutros países deu frutos.

Mas, depois, sempre que há uma tentativa do Estado de intervir nos comportamentos, vemos reações – “lá está o Estado a dizer o que podemos ou não fazer”. Sendo um homem de esquerda, como lida com essa imiscuição?

Não sou particular defensor das medidas legislativas. O que temos de fazer é proteção da saúde, que é um processo coletivo. A proibição não cria cultura, cria reação. No Cascais Shopping, onde costumo ir, é verdade que hoje não se fuma, mas cá fora é uma nuvem de fumo imensa. Houve uma mudança de cultura? Não. O importante é a aquisição de valores e isso começa na família, progride pela escola, grupos de amigos, locais de trabalho.

Mas o que podia fazer-se de concreto para ser diferente?

O problema é que tem havido proibição mas não tem havido essa intervenção coletiva, só talvez em projetos isolados. E aí é que podia entrar aquilo a que chamamos um soft power, a tal estrutura local que lança projetos que envolvem todos os atores sociais.

Como é que o centro de saúde promove a alimentação saudável se não estiver sintonizado com a escola, com a restauração, com a autarquia? 

Sendo um diagnóstico antigo, o que vos leva a bater o pé agora, das cartas ao PS ao manifesto que lançaram?
Acreditamos que estão criadas as melhores condições políticas para que esta visão da saúde se possa instalar e desenvolver.

Mas porquê? É uma visão de esquerda?

Seria obrigação da esquerda ter esta visão da saúde em que todos os atores sociais contribuem e não existe apenas uma decisão vertical. A visão de direita está fundamentalmente interessada na dimensão hospitalar. Atualmente existem 100 instituições públicas hospitalares e existe um número próximo de instituições privadas. Em termos de capacidade, praticamente já está dividido ao meio. O interesse dos privados é serem dominantes na hospitalização porque é aí que vão ganhar dinheiro. O setor capitalista ganha dinheiro com a doença.

Mas o PS abriu portas a parcerias público-privadas.

Foi com as parcerias público-privadas que o setor privado aprendeu a gestão hospitalar. Mas o processo foi iniciado com o último governo de Cavaco, em 1995.

Mas houve novas PPP com Correia de Campos, o mesmo PS que agora lidera o governo.

Há um PS do centrão e há um PS que fez esta solução política.

São dois PS diferentes?

São. Vamos ver se esta situação se aguenta.

Ainda assim, nos anos da troika, um dos argumentos do governo na defesa do SNS era ser um pilar de coesão social. Não existe um consenso?

Devia ser, mas não é. Quando vemos os tempos de espera para consultas hospitalares e que quem não quer esperar e pode ir a uma consulta no privado é visto em 24 horas pelo médico, vemos que há um problema. Quem não tem possibilidade entra numa lista que, no final do ano passado, tinha quase 800 mil pessoas à espera de consultas para além dos tempos de resposta garantidos. Há outro indicador particularmente importante: o aumento do excesso de mortalidade entre população idosa, a mais desfavorecida, mais isolada, mais doente. Não há uma política local que faça o acompanhamento nos períodos mais críticos de inverno e verão, e era fácil fazê-lo. Temos as juntas de freguesia, os centros de saúde, as forças de segurança, que conhecem estas situações. O que falta é juntar estas organizações e criar um programa de acompanhamento que previna as mortes evitáveis. Os franceses aprenderam com a catástrofe da onda de calor em 2003 e isso nunca mais aconteceu. 

Havendo críticas à política que está a ser seguida, qual é o estado de espírito do grupo em relação ao governo?

É um bom estado de espírito. Estamos confortáveis com este governo, apoiamos esta solução política, sempre o dissemos. Temos connosco gente socialista, bloquista, comunista, sem partido.

Como se juntaram?

Temos vindo a pensar em conjunto ao longo dos anos e houve um dia em que dissemos uns aos outros que isto não podia continuar assim.

Mas qual foi a gota de água?

Ao fim de praticamente dois anos de governo verificámos que o que estava no terreno era uma política de promessas e anúncios, e não mais do que isso. E mesmo em relação ao programa do governo, que dizia que a reforma do serviço de saúde ia ser feita em quatro pilares, o pilar que está a correr melhor é o dos cuidados continuados. A reforma hospitalar, não sabemos qual é.

Estão anunciados novos hospitais.

Isto não é uma reforma, são novos hospitais. Está-se a fazer novas construções que podem replicar velhos vícios. Nos cuidados de saúde primários, a principal reforma foi feita há dez anos com a criação das unidades de saúde familiar, fruto de uma auto-organização dos médicos de família. Impuseram essa agenda ao ministro Correia de Campos, que teve a clarividência de aceitar. Correu bem, com uma resposta mais próxima, bons resultados em saúde.

Correu bem para metade da população abrangida. A outra metade continua em centros de saúde onde os médicos não chegam para todos.

Pois, o problema é que falta o resto que, afinal de contas, é converter todos os centros de saúde em unidades de saúde familiar. Mas do que se tratava agora não era tanto da reforma dos centros de saúde, mas dos cuidados de saúde primários nessa vertente da promoção da saúde, mais cuidados domiciliários. Mas a visão continua a estar dentro das paredes.

Essas críticas que fazem agora podiam ter feito na anterior legislatura.

Houve uma greve dos médicos e uma manifestação na João Crisóstomo, houve críticas. Na legislatura anterior estávamos todos sob um grande constrangimento. Pensávamos em sobreviver o melhor possível e, mesmo nesse período, no verão de 2013, em plena austeridade, houve um conjunto de pessoas de que fiz parte que fez uma análise ao excesso de mortalidade. Enviámos para a PGR, que enviou para a Inspeção-Geral da Saúde, que arquivou. Enviámos para a PGR, que enviou para a IGAS, que arquivou. O grupo parlamentar do PCP perguntou à IGAS o que era feito do relatório e com que fundamentos tinha sido arquivado, e não houve resposta. Não estivemos calados, mas havia uma situação de constrangimento. 

E agora a austeridade passou?

Os indicadores macroeconómicos são excelentes. António Costa disse que em 2017 iria ter o maior crescimento do século – presumo que tenha sido uma gafe, mas ainda bem que assim é, que temos maior folga nesse aspeto. Mas, na segunda parte do mandato, não podemos continuar a estar centrados nos aspetos económico-financeiros.

E pareceu-vos que era isso que ia acontecer?

Corre-se o risco de continuarmos nesta lógica de estarmos centrados em cumprir as metas de Bruxelas. E o que dizemos é que o titular da saúde no conselho de ministros deve ser o provedor dos doentes, dos utentes, da população. Não pode ser o provedor de Bruxelas. Percebo a lógica de Mário Centeno, mas o ministro da Saúde tem de dizer no Conselho de Ministros que existe uma população a que é preciso dar resposta.

Adalberto Campos Fernandes não tem sido esse provedor?

Não, não tem sido porque continua a haver constrangimentos económicos no funcionamento das instituições e não são dados mais passos.

Adalberto Campos Fernandes conhece bem o setor da saúde, é médico, teve várias funções de gestão, além de ser um estudioso desta área. Estava à espera de uma outra visão?

A experiência de gestão não significa experiência política. Tem uma larga experiência de gestão de instituições de saúde, mas uma politica de saúde é outra coisa: é ter uma estratégia para a saúde como um todo.

Mas tendo ambos experiência de gestão, não vê diferenças entre Adalberto Campos Fernandes e Paulo Macedo?

Bom, foi o próprio ministro que disse, numa entrevista, que a política dele era de continuidade. Nós, face à conjuntura de então, até poderíamos dar algum beneficio da dúvida a Paulo Macedo. Ele vivia numa conjuntura económico-financeira muito difícil, tínhamos a troika cá. Até éramos capazes de perceber que naquela conjuntura, embora não fosse necessário impor-se tanta austeridade porque deviam ter sido definidas prioridades, fosse difícil. Mas o atual ministro da Saúde não está nessa lógica. Neste momento estamos mais folgados. 

Na anterior legislatura, Bloco e PCP não poupavam críticas a qualquer medida imposta por Paulo Macedo, e hoje assiste-se a um relativo silêncio.

Tanto o Bloco e o PCP, e já reunimos com eles, não têm estado calados. O PCP mostrou-nos um dossiê de perguntas que colocou ao ministério, a maioria sem resposta. E o Bloco, a mesma coisa. Não há uma reunião da comissão parlamentar da Saúde em que não sejam feitas perguntas, e a resposta é redonda. Há sempre um maior número de consultas, um maior número de médicos a entrar, mais centros de saúde e hospitais.

Mas o vosso movimento veio quebrar, do ponto de vista mediático, um silêncio à esquerda.

É verdade..

Mas é natural que assim seja, é isso?

Não, não é natural. Na primeira parte da legislatura havia que cumprir os acordos de novembro de 2015 e as reversões todas. Presumo que não tenha sido uma vida fácil concertar posições de maneira a que as medidas fossem conciliadas. A maior parte do trabalho político esteve concentrado nessa dimensão de cumprir a parte escrita dos acordos. Mas os acordos de novembro de 2015 têm a parte escrita e o espírito. E o espírito dos acordos, para nós, tem a ver com as políticas sociais. Se a parte dos acordos escritos está praticamente concluída, é preciso passar da letra para o espírito, dos aspetos sociofinanceiros para as políticas sociais.

E isso é o que vai revelar se valeu a pena esta aliança e os acordos?

Todos dirão que valeu a pena não só por terem afastado a direita do poder mas porque as pessoas passaram a viver melhor.

Perguntava sobre ter valido a pena para os partidos mais à esquerda.

Havia um risco. O PS é uma espécie de “la donna è mobile”. Com o resultado eleitoral que houve, podia ser um PS do centrão ou esta versão de esquerda. Não se quis correr esse risco.

O risco era António Costa?

Não seria António Costa, mas o Partido Socialista não é só António Costa. António Costa está nesta posição confortável porque tem o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda. Se estivesse sozinho, sem este apoio parlamentar, muito provavelmente os setores de direita do Partido Socialista iriam fazer-lhe a vida negra e isso poderia levar a acordos com o PSD. Portanto, só por isso valeu a pena, porque trouxe resultados concretos de restituição de rendimento às pessoas.

Mas, de certa forma, surgem como algo mais inesperado, uma espécie de sobressalto à esquerda.

Aparecemos como um sobressalto à esquerda porque não queremos que isto continue conforme está. 

Já reuniram com PS, Bloco e PCP. Não vos pediram tempo?

Não, porque há a perceção de que o que defendemos é uma política para o médio e longo prazo, mas tem de ser iniciada.

Depois de duas cartas ao PS, de um manifesto, estão a conseguir levar a água ao vosso moinho?

Estamos convictos de que vamos conseguir. Mostrámos disponibilidade ao PS para discutirmos propostas, fizemos um diagnóstico, mostrámos preocupações e abertura para trabalhar com eles, mas não temos tido retorno.

É sinal de que incomodaram?

É sinal de que, provavelmente, não está a ser fácil gerir dentro do partido e do governo esta nossa proposta.

Porquê?

O governo tinha um programa e quer cumprir esse programa. Nunca se encara muito bem alguém que se venha meter no programa. Aquilo para que estamos a chamar a atenção é que este programa mantém e cristaliza uma dada política de saúde centrada na doença.

Mas, no dia-a-dia, o SNS está pior ou melhor?

Não está pior nem está melhor, está praticamente na mesma. As pessoas estão desmotivadas, há material obsoleto e os profissionais de saúde estão a ver a sua profissão a ser desqualificada. E depois existem indicadores de que o setor privado está a captar cada vez mais clientes e, a médio prazo, se não há uma reabilitação do próprio sistema hospitalar, o setor privado, um dia, abre as garrafas de champanhe e agradece o que não foi feito nos hospitais públicos portugueses.

Portanto, são dois desafios: reformular o sistema mas também resolver o que está mal nos serviços. 

Um é a casa que já existe mas onde há pratos partidos, mobília partida. O outro, não é quase partir do zero, mas é partir do zero do ponto de vista organizado. 

Costa vai reunir-se convosco ou não?

Enviamos uma última carta à dra. Ana Catarina Mendes a 21 de julho.

A terceira carta.

[risos] É um regresso a Ramalho Ortigão. A dra. Ana Catarina Mendes, depois de lamentarmos não ter havido a reunião, contactou-nos a dizer que estava disponível para reunir ela connosco. E o que queremos saber é, tendo sido a dra. Ana Catarina Mendes a propor a reunião com o dr. António Costa, se a reunião foi discutida e quais foram eventualmente os motivos para não reunirem connosco. Esperamos resposta e depois logo vemos o que vamos fazer, mas vamos fazer alguma coisa. 

Como se meteu na política?

Acho que me meti na política quando tinha oito anos. Vivia em África, numa vila da Zambézia chamada Mucuba. Era um centro de produção de algodão, sisal e chá. Os meus pais eram comerciantes e tinham uma loja na rua principal. Eu tinha oito ou nove anos e mais de uma vez vi passar na rua principal uma fileira de presos africanos com grilhetas nos pés, a caminho das plantações.

Escravos?

Eram presos, mas eram mão-de-obra colocada à disposição da companhia inglesa de algodão. Foi a primeira imagem que se fixou na minha cabeça e foi a partir dessa imagem que comecei a perceber que não éramos todos tratados da mesma forma. Fiz a instrução primária lá e depois vim para Lisboa fazer o liceu no Colégio Valsassina.

Vem para Lisboa sozinho?

Sim, para o internato. Foi outro momento importante, começaram as leituras. Era um colégio da elite portuguesa, mas o corpo docente era feito de professores que não eram admitidos nas escolas públicas pela suspeita de não serem afetos ao regime. E o curioso era que, sendo um colégio frequentado pelos filhos do regime, admitia-os praticamente todos. O meu professor de História era o pai do Álvaro Cunhal, o prof. Avelino Cunhal. O meu professor de Matemática era o tio do Nuno Crato. 

Mas as aulas tinham uma dimensão política?

Não havia lá o marxismo-leninismo! Mas eram professores de craveira que usavam métodos pedagógicos que não se usavam no ensino público. Nas aulas de História do prof. Avelino Cunhal só uma parte era expositiva, a outra parte era alguém que em casa tinha estudado a Revolução Francesa e apresentava a matéria.

Não se alimentava o paternalismo.

Precisamente. E, por outro lado, era um colégio com regras muito liberais, uma relação próxima entre os diretores e os alunos. 

E depois vai tirar Medicina.

Sim, regresso a África para a universidade, em Lourenço Marques. Pouco tempo depois envolvi-me nas atividades associativas e fui um dos cofundadores da associação académica de Moçambique e, depois, do cineclube. Comecei também a fazer teatro e a escrever. O meu primeiro livro é escrito em 1969, que é quando começa a minha vida política propriamente dita.

O seu primeiro livro de poemas, “Ghetto”, foi apreendido pela PIDE.

Havia uma sede da PIDE em Lourenço Marques, chamada Vila Algarve. Fui lá duas ou três vezes.

No dia-a-dia reuniam-se às escondidas?

Não, reuníamos no refeitório de uma residência universitária. Começou a certa altura a haver algum envolvimento entre o movimento dos democratas de Moçambique, liderado na altura por Almeida Santos, e a associação de estudantes, e foi aí que começámos a fazer a nossa aprendizagem política.

Mas é chamado à PIDE pelos versos ou por esse envolvimento?

Pelas duas coisas. A publicação do livro tornou as coisas mais difíceis. Era um livro contra o racismo, contra a segregação. A capa foi feita por Armando Lopes Alves, um homem de que não se fala muito mas que foi o principal responsável pelas notáveis pinturas do MRPP. 

Acaba de tirar Medicina em Lisboa.

Chego em 1970 e entro em contacto com o mundo do movimento associativo, que em Medicina era particularmente forte. Em 73 há uma lista que ganha as eleições da associação académica que é liderada por Joaquim Judas, hoje presidente da Câmara de Almada, e também tinha a Sita Vales. Nesta altura começam a aparecer os “gorilas” nas faculdades. Como havia uma grande agitação – éramos basicamente territórios livres –, o então ministro do Interior decide pôr guardas à porta das faculdades, para dissuadir qualquer manifestação ou evento que pusesse em causa o regime. 

Armados?

Com bastões. Chegou a haver confrontos. Mas nunca conseguiram entrar em Medicina. E não conseguiram porque, na altura, quem dirigia a faculdade era um homem absolutamente notável, um democrata, o prof. Cândido Oliveira. Ele pôs como condição para aceitar a direção da faculdade não haver gorilas. E as coisas foram de tal maneira que, já no pós-25 de Abril, todos os diretores de faculdades foram saneados exceto ele. Esteve sistematicamente ao lado dos alunos. Em 1973 houve um assalto à sala de alunos pela PIDE, ao sítio onde se faziam as sebentas e alguma propaganda politica. Prenderam-se três alunos que estavam lá a trabalhar. Eu, na altura, era da direção da associação de estudantes, telefonaram-me e fui a casa do prof. Cândido Oliveira, e ele imediatamente telefonou para o Veiga Simão, ministro da Educação, e avisou que ou a PIDE ia embora ou ele pedia a demissão. E a PIDE foi embora.

Na altura já estava ligado ao PCP?

Não, fui convidado para o PCP no dia 25 de maio de 1974 pela Sita Vales. Antes disso, a União dos Estudantes Comunistas (UEC) chegou a reunir em minha casa, mas não conversava sobre o assunto. Eu era o elemento que oferecia casa e acolhia as reuniões.

Isso não era estranho?

Era assim. Havia aspetos importantes de segurança naquela altura, no sentido de restringir os núcleos de militantes a alguns elementos. Era uma forma de proteção. Eles contavam comigo, mas havia um entendimento tácito de não saber mais do que era necessário. A principal célula da UEC era em Medicina. Dessa altura fazem parte elementos do movimento que temos agora, como o Paulo Fidalgo ou a Deolinda Barata. Portanto, este grupo dos 25 que subscrevem a carta ao PS têm este passado histórico. Íamos sabendo uns dos outros e percebendo todos que estavam na mesma pista.

Começa a exercer medicina pouco antes da criação do SNS. Como foi esse período?

Havia grandes expetativas e empenho, tanto dos médicos como dos outros profissionais. E aquela construção foi particularmente fácil porque existia a figura do serviço médico à periferia.

Quando acabavam o curso tinham de ir fazer um ano de trabalho nas zonas mais rurais.

E isso foi fundamental não só para que as pessoas tivessem cuidados, mas para fazê-las perceber que tinham direitos e que havia recursos para concretizar esses direitos. Começámos o serviço à periferia em 1975 e o SNS começa em 1979. 

Tem saudades da saúde pública no terreno?

Não porque tenho preenchido muito a minha atividade com a docência e gosto muito de ensinar. Dou aulas no curso de Farmácia e no curso de Exercício Físico e Bem-Estar, sobre promoção de saúde. Digo duas coisas aos meus alunos na primeira aula. Uma, disse no início: a regra é sermos saudáveis, a exceção é sermos doentes. E outra é que devemos trabalhar sempre até à véspera de morrer. Depois, o dia de morrer é para prepararmos o funeral [risos]. Isto tem que ver, claro, com o princípio que cada um tem na sua vida, e o meu é manter-me ativo e procurar discernir a contribuição que posso dar, e não começar a fazer tolices. Temos de ter um alter ego suficientemente afinado.

É difícil para um médico saber quando parar?

Sabe que um dos meus principais hobbies é pensar, e o pensar permite-nos ir fazendo a história de cada dia. E a avaliação é que a coisa ainda vai dando. Relativamente ao momento em que vivemos, acredito mesmo que é uma encruzilhada que temos de desfazer, decidir se isto é um ponto de chegada ou um ponto de partida.

E acha que os partidos à esquerda se estavam a encostar ao ponto de chegada?

Presumo que alguns não estão, mas há muitos atores políticos que já estão confortáveis nesta situação e podem achar que isto é suficiente.

Por exemplo?

Presumo que o setor socialista é capaz de achar que isto é um ponto de chegada – não estou a falar do Bloco e do PCP, de maneira nenhuma. E a nossa ideia foi dizer claramente isso: na saúde, isto não pode ser um ponto de chegada e já estamos a partir com atraso. Há que preservar o SNS, até porque vai haver novas gerações e é necessário que elas se envolvam desde cedo nesses processos, nesta dimensão mais social.

Mas sente diferenças nos jovens profissionais?

Há jovens que se empenham, mas houve aqui uma cultura nos últimos anos de privilegiar fundamentalmente a carreira. Isso é importante porque temos jovens médicos muito bons tecnicamente, mas há uma dimensão política que importa também ter. 

São mais egoístas do que vocês eram?

Não, têm é de olhar pela vida e a vida não está fácil. A vida foi mais fácil para nós. Um jovem médico, ao final do mês, hoje ganha 1200 euros líquidos. Nós, comparativamente, ganhávamos muito mais. O meu primeiro ordenado em 1974 foram 2500 escudos, uma pipa de dinheiro na altura. Eles têm a preocupação de serem bons profissionais, de terem de ganhar os concursos, de poderem escolher os melhores serviços, mas depois há uma dimensão da vida das instituições que lhes é difícil captar. O que nós queremos alertar é que há necessidade de se mobilizarem e se envolverem nestes aspetos da política da saúde.

Sai do PCP no ano 2000. 

Com muita gente: Edgar Correia, João Amaral e outros. Fundamentalmente, teve a ver com dois aspetos. Um está resolvido com esta solução política: desde essa altura, defendíamos a necessidade de o PCP equacionar, não quer dizer que fosse instantemente, alianças com o PS. Era a ideia de que só saíamos deste imbróglio nacional se fôssemos parte da solução, e não apenas parte da oposição. Demorou 15 anos, mas nesse dia fizemos uma festa.

Mas não regressou ao PCP.

Podia, mas continuei a dar-me bem. Houve uma reunião com o PCP para apresentar este manifesto e as coisas correram muito bem, e na área da saúde nunca houve um corte de relações. A outra razão para deixar o PCP era o centralismo democrático, a eterna razão, no sentido em que considerávamos na altura que a circulação de informação e a discussão teria de ser muito mais ampla no partido, e não tão estanque, para que as posições de baixo pudessem chegar com mais facilidade aos órgãos superiores. Havia vários filtros.

Herança da clandestinidade?

Exato, é um processo histórico. Percebe-se isto nos primeiros dez ou 20 anos, mas em 2000 já tinham passado quase 30 anos, já não havia justificação para as coisas serem tão herméticas e as opiniões não circularem com mais rapidez. Primeiro que um ponto de vista chegasse ao secretariado ou à comissão politica era o cabo dos trabalhos. 

Deste PCP não tinha saído?

Não tinha saído. Em 2015 não tinha saído, claramente. 

Também houve críticos deste apoio ao PS. 

Sim. Mesmo as críticas dentro do PCP não se fazem ouvir e penso que se vão diluindo face às conquistas.

Mas ainda pensa regressar ao partido?
Neste momento não é o mais importante e o fio condutor é trabalhar com socialistas, bloquistas e comunistas.

Nessas reuniões é como regressar aos corredores da faculdade há 40 anos?

Não, porque sempre nos fomos encontrando. Os corredores é que têm regressado a nós e têm sido corredores mais compridos [risos]. Termos vivido o tempo que vivemos deu-nos uma perceção grande do que é preciso fazer, do que é necessário. Se não se fizer, o SNS vai ser insustentável. Hoje, 80% são doenças crónicas, que levam os recursos todos. E antes dos 69 anos, a maior parte delas podem ser evitadas. E isto é que é dramático. Sabemos isto, está escrito em todo o lado, está na declaração de Alma-Ata, no relatório Lalonde, na declaração de Zagrebe das cidades saudáveis. É regressar aos clássicos.