Os tristes acontecimentos das últimas três semanas, desde os fogos de Pedrógão Grande ao roubo de armas dos paióis de Tancos, passando pelos casos da divulgação antecipada do ponto de exame de Português e do Galpgate, bem como as notícias semanais de acusações por corrupção de políticos e de funcionários, mostram à evidência as razões do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade. De facto, é no excesso de concentração de todo o poder nos partidos políticos, com o equivalente controlo exercido pelo Estado sobre as instituições da sociedade, que deveremos procurar a explicação para todos estes acontecimentos.
No caso de Pedrógão Grande foi evidente a ausência de capacidade de comando, que permitiu que o combate ao incêndio tivesse precedência relativamente à evacuação das populações em perigo, o que provocou a imensa tragédia que nos envergonhará para sempre. No caso de Tancos, a longa e humilhante desvalorização das Forças Armadas pelo poder político, nomeadamente com a menorização do fator competência relativamente à conveniência partidária na escolha das chefias militares, abriu a porta à degradação do serviço que permitiu o que agora aconteceu. O que não serve de justificação, mas que dá para compreender que o prestígio da instituição Forças Armadas não pode ser confiado aos desprestigiados partidos políticos portugueses.
Entendamo-nos: há muito que não vivemos num verdadeiro regime democrático, do povo e para o povo, e há muito que a Assembleia da República, sede da democracia, deixou de representar todos os portugueses, seja os que não votam, seja os que, votando, não se revêm na ação e na inação dos deputados escolhidos pelos líderes partidários. Deputados que não fiscalizam os governos e que nunca se preocuparam com as questões que mais interessam aos portugueses, como as que agora debatemos, desde o SIRESP às condições de trabalho e de comando dos bombeiros, dos recursos das Forças Armadas à sua desvalorização, da floresta ao vazio humano e económico do interior.
Há anos que existe um largo consenso na sociedade sobre a necessidade de organizar a floresta, de mapear a propriedade rural, de proceder ao emparcelamento da propriedade com a devida compensação aos proprietários que não tenham a suficiente capacidade económica para proceder à sua exploração, de repensar as espécies a desenvolver de forma a tornar a sua existência não só rentável mas também ao abrigo de incêndios generalizados. A questão é agora a de saber o que foi feito pelos governos e pelo parlamento sobre tudo isso? Negócios, muitos negócios: no SIRESP, nos Kamov, nos aviões alugados, nas rendas pagas a empresas com relações privilegiadas com os partidos.
A base de Tancos há anos que não tem as condições mínimas de segurança: a videovigilância está desativada, as torres de vigia não têm vigilantes, a rede que circunda a base haveria de ser consertada um dia e os militares da ronda não têm munições para a sua própria defesa. Nada de grave, portanto, já que o primeiro-ministro sabe que as armas roubadas não serão usadas por terroristas ou quaisquer máfias mal-intencionadas.
Noutros países, com regimes democráticos credíveis, os bombeiros e as polícias, tal como os militares, são sujeitos a inspeções periódicas, fazem exercícios regulares para demonstrar aos seus superiores a sua competência e prontidão em situações extremas e tão próximas da realidade quanto possível, os acidentes são tentativamente previstos e, se necessário, combatidos com eficácia. Em Portugal, basta a ministra da Administração Interna chorar e o ministro da Defesa assegurar que não sabia de nada para que o primeiro-ministro lhes renove a sua confiança porque, obviamente, o que está em causa não é a vida e a segurança dos portugueses, mas a sobrevivência do partido, ou partidos, no poder.
Os signatários do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade tinham razão quando há anos defenderam publicamente que a raiz da má governação em Portugal residia nos partidos políticos e na forma como estes condicionam o acesso ao poder político, seja no acesso à Assembleia da República, seja nas autarquias, seja nos diferentes órgãos do Estado. Mas não só, também a forma como esterilizam a independência das instituições, desde as Forças Armadas às associações empresariais e até à própria Igreja, cada vez mais limitada a ser o complemento dos serviços sociais do Estado, atividade da maior relevância, mas que não deveria excluir a liberdade de opinião – a exemplo, aliás, do Papa Francisco.
Não será, portanto, necessário ser profeta para prever que os acidentes que agora estão a ser tão debatidos na sociedade portuguesa continuarão a acontecer. Pelo menos enquanto os portugueses não puderem escolher, um a um, os seus representantes, em plena consciência e liberdade, porque essa é a base de qualquer democracia moderna. É na qualidade e na verdade dessa escolha que reside a melhoria do nível de exigência dos cidadãos perante os seus eleitos e a representatividade, a qualidade e a disciplina das instituições.