Profeta desarmado. "A história me absolverá"
Dizia uma anedota em Cuba que o triunfo da revolução são: saúde, educação e desporto. Os fracassos: pequeno-almoço, almoço e jantar. A herança de Fidel Castro bate-se entre a independência e os meios repressivos para defender a revolução.
Morreu com 90 anos. O seu irmão, Raúl Castro, que lhe sucedeu no poder, anunciou a notícia na televisão: “É com profunda dor que compareço para informar o nosso povo, os nossos amigos da América e do mundo, que hoje, 25 de novembro de 2016, às 10h29 da noite, faleceu o comandante-em-chefe da Revolução Cubana, Fidel Castro Ruz”. Acrescentou, emocionado: “Segundo vontade expressa do companheiro Fidel, os seus restos serão cremados às primeiras horas da manhã de sábado 26 […] Hasta la victoria! Siempre!”
Fidel Castro esteve no centro de muitos acontecimentos mundiais durante a sua vida. Chegou ao poder durante o mandato de Dwight Eisenhower e liderou a ilha até ao segundo mandato de George W. Bush. Morreu no final da presidência de Barack Obama, o primeiro presidente americano de todos os tempos a visitar Havana e a restabelecer as relações diplomáticas com a ilha, depois de uma longa negociação com Raúl Castro. Fidel, que recebeu Marcelo Rebelo de Sousa, não se encontrou com Obama. Num artigo para o “Granma”, órgão oficial do Partido Comunista de Cuba, o líder da revolução declarou que não confiava nos norte-americanos, mas que era sempre favorável a que os conflitos se resolvessem pacificamente.
Numa entrevista em 1985 à revista “Playboy”, perguntaram-lhe o que tinha a responder sobre as afirmações do presidente Ronald Reagan qualificando-o como um horrível ditador. Fidel fez uma pausa, olhou para o seu entrevistador e disse: “Deixe-me pensar sobre a sua questão.” Durante a entrevista, acrescentou: “Se ser ditador significa governar por decreto, então acho que devem usar o mesmo argumento para acusar o Papa de ser um ditador.” E virou, em seguida, o argumento contra Ronald Reagan: “Se o poder inclui algo tão monstruoso e antidemocrático como a capacidade de ordenar uma guerra termonuclear, eu pergunto-lhe: quem é mais ditador, o presidente dos Estados Unidos ou eu?”
Fidel Castro: anjo ou demónio? Revolucionário ou ditador?
Um dos últimos gigantes do século xx, o homem que marcou a América Latina e a sua rebeldia face ao império norte-americano não deixam ninguém indiferente. Até o nome com que é referido marca uma posição: quem gosta dele chama-lhe Fidel, quem não gosta apelida-o de Castro. Um nome para Havana e outro para Miami.
Sobre ele escreveu o recentemente falecido, a 13 de agosto de 2015, escritor uruguaio Eduardo Galeano:
“Os seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o “Granma”, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.
E nisso seus inimigos têm razão.
Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão, que enfrentou os furacões de igual para igual, de furacão a furacão, que sobreviveu a 637 atentados, que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colónia em pátria e que não foi nem por feitiço de bruxo nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.
E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho.
E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pode ser e não o que quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia a la cubana, obrigou à militarização da sociedade e outorgou à burocracia, que para cada solução tem um problema, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.
E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta.
E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha.”
Fidel Alejandro Castro Ruz nasceu às 2 horas da manhã do dia 13 de agosto de 1926 na pequena povoação de Birán, perto de Holguín, na zona oriental da ilha. Foi o terceiro dos sete filhos de Ángel Castro, um fazendeiro chegado da Galiza para combater na Guerra da Independência, em que morreram mais de 300 mil cubanos, e o primeiro tido com a sua segunda mulher, Luna Ruz.
Estudou nos jesuítas. Segundo um dos seus colegas, Juan Ravira, que vive exilado em Miami, citado pelo jornalista norte-americano Tad Szulc, autor de “Fidel, Uma Biografia Crítica”, “Fidel entusiasmava toda a gente quando havia um jogo de básquete ou um torneio de atletismo, porque ele corria muito depressa e as suas qualidades desportivas eram fantásticas. Era excelente em todos os desportos também porque beneficiava da simpatia geral. Em matéria de estudos não brilhava tanto mas, quando chegava o período de exames, podia trabalhar muitíssimo. Os estudantes internos levantavam-se muito cedo, às quatro horas da manhã, e ele tinha uma memória prodigiosa. Era capaz de reproduzir por escrito tudo o que tinha lido, palavra por palavra, e parecia que tinha copiado, mas ele tinha gravado tudo na sua cabeça. Obtinha grande notas devido a esta memória prodigiosa”.
Em 1945 começou a estudar Direito na Universidade de Havana, onde o ambiente explosivo e revolucionário o levaram a incorporar-se em rocambolescas aventuras revolucionárias, como a tentativa de expedição armada para derrubar o ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo, em 1947. Um ano depois, já como dirigente estudantil e a participar numa reunião em Bogotá, envolveu-se na revolta do Bogotazo – a revolta popular contra os conservadores, depois do assassinato do líder liberal colombiano Jorge Eliécer Gaitán -, que foi a sua primeira experiência de insurreição popular, segundo garante o perfil do “El País”. Foi também em 1948 que se casou com uma estudante de Filosofia de famílias endinheiradas, Mirta Díaz-Balart, com quem teve o seu primeiro filho, Fidelito.
Depois de se licenciar começou a advogar em 1950 e entrou na política pelo Partido Ortodoxo, de Eduardo Chibás, um político semelhante ao colombiano Gaitán. Chibás era um político muito popular que denunciava a corrupção governamental, provável vencedor das presidenciais marcadas para 52. Suicidou-se em direto num programa de rádio, por não conseguir provar umas acusações que tinha feito ao governo. Fidel foi escolhido pelos ortodoxos para se candidatar ao Congresso nas eleições de junho de 1952, que nunca chegaram a realizar-se. A 10 de março desse ano, o ex-sargento Fulgencio Batista encabeçou um golpe apoiado por Washington.
Os EUA tiveram um papel importante na expulsão dos colonizadores espanhóis, mas o seu objetivo não era propriamente acabar com o colonialismo. Em 1899, os Estados Unidos da América discutiam no Congresso a anexação das antigas colónias espanholas que tinham lutado pela sua independência, nomeadamente as Filipinas. Nessa altura, o poeta britânico Rudyard Kipling escreveu um poema apologético para declarar que o facho da civilização já não estava nas mãos do Reino Unido. “O Fardo do Homem Branco” defendia que passara a caber a Washington tratar dos selvagens para o bem deles, sem contar com o seu agradecimento. Os nativos do mundo tinham de ser dirigidos pelas potências ocidentais. Eram homens inferiores, de civilizações fracas que precisavam de ouvir a voz do dono. Os agitadores deviam ser castigados e eliminados, se necessário por meios violentos. Os selvagens deviam ser controlados, para seu bem. Assim começava a declaração de bondade civilizadora:
Tomai o fardo do Homem Branco,
Enviai vossos melhores filhos.
Ide, condenai os filhos ao exílio
Para servirem os seus cativos;
Para esperar, com arreios,
agitadores e selváticos
Seus cativos, servos obstinados,
Metade demónios, metade crianças.
Profeta armado. "Socialismo ou morte!"
Consta que uns dissidentes escreveram ao lado da palavra de ordem pintada em muitas paredes de Cuba, "socialismo ou morte": "Qual é a diferença?" A revolução derrotou a ditadura de Fulgencio Batista, mas meteu-se num combate de morte com a maior potência mundial. Um conflito que ia levando o planeta à guerra mundial e que fez do socialismo cubano um regime que luta todos os dias para se defender e reprimir a dissidência.
Entre o consenso dos meios de comunicação e dos poderosos, houve um homem que não se calou. O escritor que assinava Mark Twain, autor d’“As Aventuras de Huckleberry Finn”, respondeu com um artigo em plena euforia “civilizadora”, quando os poderosos norte-americanos abriam garrafas de champanhe pela anexação das ilhas do Havai, de Samoa e das Filipinas, de Cuba, Porto Rico e de uma ilhota que se chama, eloquentemente, dos Ladrões. Perante isto, Mark Twain faz uma singela proposta e pede que se mude a bandeira nacional: que sejam negras, diz, as listras brancas, e que umas caveiras com tíbias cruzadas substituam as estrelas e assumam a verdadeira identidade de piratas.
A 28 de fevereiro de 1901, o senador dos EUA Orville H. Plarr propõe emendar a Lei dos Gastos do Exército, incluindo nesta uma cláusula que regularia as relações entre o novo Estado independente cubano e Washington. Esta emenda recebe o apoio do Congresso e da Casa Branca e é entregue pelo governo militar de Cuba à Convenção Constituinte. Com ela se insere na nova Constituição do país vários artigos, entre os quais um que estabelece a intervenção militar americana sempre que Washington considere que estão em causa os seus interesses. No seu artigo terceiro, a lei determina que “o governo de Cuba consente que os Estados Unidos podem exercer o direito a intervir para a defesa da independência cubana e a manutenção de um governo adequado para a proteção de vidas, propriedade e liberdade individual”.
Cuba, como grande parte da América Latina, era considerada o quintal dos norte-americanos. No ano em que Castro nasceu, os investimentos dos EUA na ilha ascendiam a 1600 milhões de dólares (o equivalente a 21 600 milhões de dólares hoje); nos anos que se sucederam, as empresas norte-americanas ganharam o monopólio de grande parte dos principais setores da economia da ilha. Na região onde Fidel passou a infância, a United Fruit Company era omnipresente – a mesma companhia a que se deve o apodo de “República das Bananas” para os governos-fantoche da região e a propósito da qual políticos norte-americanos que ajudaram a derrubar, em 1954, o governo de esquerda da Guatemala, dirigido pelo coronel Jacobo Árbenz Guzmán, diziam: “O que é bom para a United Fruit é bom para os EUA.”
Depois do golpe de Batista, Fidel rompeu com os ortodoxos, por considerar que quase não se tinham oposto ao estabelecimento da ditadura. Para derrubar o novo governo, Castro tentou uma ação armada que devia servir de fagulha a uma insurreição popular. A 26 de julho de 1953, 135 elementos comandados por Fidel Castro tentaram tomar o quartel de Moncada, em Santiago de Cuba. A operação fracassou: 67 dos membros do comando foram mortos, a maioria barbaramente torturados e assassinados depois dos combates. Os irmãos Castro foram presos, mas uma campanha internacional impediu que tivessem sofrido a mesma sorte que a maior parte dos revoltosos. No julgamento que se seguiu, Fidel fez a sua célebre defesa, conhecida por “A História me absolverá”, em que traça os principais traços do que deve ser um governo revolucionário e defende a restauração da democracia e da Constituição de 1940. As suas últimas palavras no julgamento serão as seguintes: “Quanto a mim, sei que a prisão será dura como nunca foi para ninguém, cheia de ameaças, de vis e cobardes provocações; mas nunca a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida a 70 irmãos meus. Condenem-me, não importa, a história me absolverá.”
Fidel e Raúl foram condenados a 15 e 13 anos de prisão, respetivamente. Mas o regime de Batista pretendia dar a ilusão de estar a democratizar-se e os presos do processo de Moncada foram amnistiados em 1955. Fidel Castro partiu para o exílio no México, onde veio a conhecer o médico argentino Ernesto “Che” Guevara. Os revolucionários elaboraram um plano de desembarque de uma pequena força guerrilheira em Cuba. No dia 2 de dezembro de 1956, o iate Granma desembarcou esta pequena força expedicionária, de 82 homens, na praia das Coloradas, na costa oriental de Cuba.
A operação foi um fiasco. “Não foi um desembarque, foi um naufrágio”, diria mais tarde um dos que aportaram à ilha. O Granma tinha atolado na costa cubana em plena luz do dia, o bote com mantimentos e armas afundara, e a força aérea de Batista começara a metralhar os insurrectos assim que pisaram terra firme. No dia seguinte, a notícia divulgada pelo exército da ditadura correra o mundo: o guerrilheiro fora aniquilado ao tentar invadir a ilha com seu irmão Raúl e 40 outros guerrilheiros.
Fidel precisava de ressuscitar. Restavam-lhe cerca de 20 homens mal alimentados. Seus ataques a postos militares remotos não conseguiam ser notícia. Foi nestas circunstâncias que constatou precisar de se exibir perante o mundo. Recorreu a um expediente já usado, em 1895, por José Martí, o herói máximo da independência e da história revolucionária de Cuba: convocou um jornalista americano para divulgar as suas ideias. O arauto deveria ser, idealmente, de um grande jornal. E, de preferência, de direita, para aumentar o impacto, é o que nos revela o artigo da revista piauí “Um jornalista que foi notícia”, de Dorrit Harazim. É dessa perceção de marketing político que resulta o encontro de três horas entre Herbert L. Matthews e Fidel Castro Ruz. O repórter conseguiu o que até hoje é considerado um dos grandes furos jornalísticos. Fidel obteve legitimidade dentro e fora de Cuba, além de fôlego para prosseguir a guerrilha, que estava em condições periclitantes, e assumir a liderança simbólica das dezenas de pequenos grupos que combatiam a ditadura.
A reportagem não se fez sem insistência do jornalista. Os proprietários do jornal não viam com bons olhos incomodar o ditador Batista. No livro “O Homem que Inventou Fidel”, de Anthony Depalma, revela-se os bastidores da reportagem, mostrando documentação detalhada das circunstâncias do episódio, que deixam à mostra as entranhas do funcionamento de um grande jornal: memorandos internos da direção, bilhetes manuscritos pelos editores e repórteres envolvidos na cobertura de Cuba, dúvidas da família Sulzberger, proprietária do jornal, quanto ao acerto da reportagem que incomodaria os interesses dos EUA na ilha das Caraíbas.
Um drama que também teve a sua parte cómica. De capote, cachecol e boina de lã pretos, a figura de Matthews chocava com a paisagem tropical. O americano subiu a montanha sem gravador, só com bloco de notas e caneta, para não levantar suspeita nos controlos militares.
Nos três artigos publicados no “The New York Times”, Castro repetiu que o futuro que queria para Cuba era uma democracia e não tinha nada que ver com o comunismo: “[Castro] tem como ideias-força a liberdade, democracia e justiça social, e que é necessário restaurar a Constituição e realizar eleições”, escreveu o jornalista sobre o seu entrevistado. Perguntou-lhe sobre as relações futuras com os EUA e Castro assegurou: “Podem estar seguros de que não temos nenhuma animosidade em relação aos Estados Unidos e ao seu povo.”
Posteriormente, na entrevista que deu ao autor da sua melhor biografia, Tad Szulc, matizou as suas posições políticas na altura. Era óbvio que tentava seduzir a opinião pública norte-americana para a sua luta e pressionar o governo de Washington para que fosse reduzida a ajuda ao ditador Fulgencio Batista. Muitos autores consideram que a evolução de Fidel para o comunismo foi forçada pelo cerco que os EUA lhe fizeram depois da nacionalização dos interesses das empresas norte-americanas na ilha. Fidel Castro confessou ao biógrafo Tad Szulc que já tinha lido livros de Marx, que as ideias aí expressas lhe agradavam, mas não tinha aderido ao partido. “Eu adquiri consciência revolucionária. Participava na luta, mas vamos dizer: eu era um combatente independente”, confessou Fidel.
Já os serviços secretos norte-americanos tinham uma opinião definida sobre Fidel Castro: “Um exemplo de um jovem cubano de boas famílias que, em consequência da falta de controlo paternal ou de verdadeira educação, pode tornar-se um autêntico gangster.” Por sua vez, Fidel Castro, durante a sua luta de guerrilha, radicaliza a sua posição sobre os EUA. Em carta à sua grande amiga e colaboradora Celia Sanchéz, indigna-se contra o apoio de Washington a Batista e o bombardeamento com bombas dos EUA a uma casa de camponeses pobres: “Ao ver as bombas que largaram sobre a casa de Mario, jurei que os norte-americanos vão pagar bem caro o que estão a fazer, Quando esta guerra acabar, começarei uma guerra muito maior e duradoura: a guerra que vou ter contra eles. Esse será o meu verdadeiro destino.”
A 1 de janeiro de 1959, o ditador Fulgencio Batista foge (chega a viver muitos anos na ilha da Madeira e morre em 1973, em Marbella). Fidel Castro entra em Havana a 8 de janeiro, aclamado por dezenas de milhares de pessoas que saúdam o derrube da ditadura de Batista. Quando nesse dia fez um dos seus longos discursos à multidão, a certa altura foram libertadas pombas brancas para simbolizar a paz e uma delas pousou-lhe no ombro, levando a multidão a gritar: “Fidel, Fidel!”, reagindo a uma espécie de sinais dos deuses, presentes no catolicismo misturado com as religiões de origem africana que embebem a ilha. O escolhido tinha chegado a Havana.
Profeta abandonado. "O meu maior desafio foi aos 60 anos [o fim da URSS]
A queda da União Soviética levou os inimigos da Revolução Cubana a profetizarem-lhe um fim rápido.
Havana já se aguenta há mais de 25 anos. O preço a pagar foi a legalização do dólar, a proliferação do turismo, o aumento das desigualdades e da prostituição. Ninguém sabe o que acontecerá depois da morte do líder histórico Fidel Castro.
Apesar de o exército revolucionário ter feito durante toda a sua guerra uma distinção face ao tratamento a que eram sujeitos os seus combatentes pelo exército da ditadura, os revolucionários, quando tomam o poder, criam tribunais especiais e fuzilam cerca de 500 dos chefes militares e torcionários de Batista. As imagens correm o mundo e levam a comunicação social e o governo dos EUA a protestar contra essa “barbárie”. O facto irrita Fidel, que contesta que era pena que não tivessem feito o mesmo barulho pelos muitos milhares de mortos e torturados pela ditadura de Fulgencio Batista.
A 17 maio de 1959, Fidel Castro aprovou a lei da Reforma Agrária, que resultou na expropriação de numerosos grandes proprietários, muitos deles norte--americanos. A nacionalização de empresas dos EUA e a expulsão dos mafiosos da indústria turística e do jogo da ilha levou a retaliações económicas do governo dos EUA. A crescente hostilidade da Casa Branca foi vista pelos revolucionários de Havana como uma ameaça. Depois de ter sido lançada uma campanha nacional de alfabetização, Fidel recuou na promessa de fazer eleições livres em 18 meses: “Primeiro a revolução, depois as eleições”, defendeu. Anos depois, já no tempo do chamado “período especial” (depois da queda da União Soviética), falei com um membro do bureau político dos comunistas cubanos, Abel Prieto, que me respondeu de forma dura à pergunta sobre o porquê de não existirem eleições multipartidárias em Cuba: “Se fosse com a nossa oposição interna, as eleições eram já amanhã. Agora, nós não concorremos contra os dissidentes, mas contra o império. E não há eleições justas e equilibradas contra o poder de um império.”
Em 1959 dão-se as primeiras dissidências importantes no seio dos revolucionários: o comandante Huber Matos, que tinha estado na Sierra Maestra com Fidel e que era governador militar de Camaguei, demite-se em protesto contra a crescente radicalização da revolução. Esteve 20 anos preso. Quando saiu, justificou-se a uma revista norte-americana: “Eu divergi de Fidel Castro porque o objetivo inicial da revolução era ‘liberdade ou morte’. Uma vez Castro no poder, começou a matar a liberdade.”
A 17 de abril de 1961, depois de uma série de ataques e atentados de forças contrarrevolucionárias armadas pelos EUA nos meses anteriores, 1500 cubanos treinados pela CIA invadiram a ilha, na operação que ficou conhecida pelo nome de “Baía dos Porcos”. O desembarque foi precedido de bombardeamentos de aviões norte-americanos pintados com as cores da força aérea cubana. Junto às praias, centenas de milicianos cubanos, comandados por Fidel Castro, esperavam os invasores. A maioria dos expedicionários da CIA foram capturados ou mortos. O executivo de Kennedy, depois de exposto o seu envolvimento em termos internacionais, recuou em atacar diretamente a ilha com o exército norte-americano.
Em 2 de dezembro de 1961, Fidel faz um longo discurso na Praça da Revolução em Havana e explicita a sua posição perante o conflito político e ideológico que tem com a Casa Branca: “Sou um marxista-leninista.” A 22 de janeiro de 1962, Cuba é excluída da Organização dos Estados Americanos (OEA), e poucos dias depois, a 3 de fevereiro de 1962, o presidente norte-americano Kennedy ordena o bloqueio económico à ilha que se mantém até aos dias de hoje. A 14 de março de 1962, Kennedy aprova um plano secreto de operações “a fim de ajudar Cuba a derrubar o regime comunista”. Este plano de guerra suja é batizado de Plan Mangosta.
A 22 de outubro de 1962, depois de aviões de reconhecimento dos EUA terem identificado bases de mísseis nucleares soviéticos na ilha, Kennedy dá ordem para os navios de guerra bloquearem a ilha e diz ao ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, Andrei Gromiko, em Washington, estar pronto a invadir Cuba. Depois de alguns dias de braço-de-ferro, os soviéticos recuam sem consultar os cubanos. O que irrita Fidel Castro, que se manifestava disposto a ir para a guerra com os norte-americanos, tendo mobilizado 70 mil cubanos para se opor à invasão. Em entrevista ao jornalista francês Ignacio Ramonet, Fidel recordou esses momentos: “Nós inteirámo-nos pela comunicação social de que os soviéticos estavam a fazer a proposta de retirar os mísseis. Não tinham sequer discutido connosco. Não estávamos contra uma solução, porque o importante era evitar uma guerra nuclear. No entanto, os soviéticos tinham de ter dito aos norte-americanos: ‘Têm de conferenciar com os cubanos.’ E não tiveram firmeza.” Os soviéticos conseguem como moeda de troca a promessa dos EUA de que não invadirão a ilha e a retirada de mísseis nucleares dos EUA da Turquia.
Conta-se como anedota que, nos primeiros conselhos de ministros cubanos, Fidel terá perguntado se havia na mesa algum bom economista, e que Che estava tão cansado que quase dormitava e terá ouvido se havia um bom comunista, e levantou o braço como voluntário, acabando ministro da Indústria. Che Guevara era, dos combatentes do grupo expedicionário inicial, daqueles que possuíam maior formação ideológica. Percebia a necessidade de a Revolução Cubana se aliar à União Soviética para sobreviver, mas não lhe agradavam algumas das características burocráticas do socialismo real e, sobretudo, não se estava a ver a fazer esse tipo de trabalho em Cuba. Fidel Castro defendia que, se os EUA “internacionalizavam o bloqueio, Cuba iria ajudar a internacionalizar a revolução”. Já em outubro de 1963, respondendo a um pedido do presidente argelino Ben Bella, os cubanos enviam 22 tanques e centenas de homens para a Argélia para evitar uma invasão de Marrocos na zona de Tinduf. É a primeira intervenção cubana em África. Na conferência tricontinental com os movimentos de libertação em Argel, Che Guevara lança a sua primeira palavra de ordem: “Há que criar dois, três, muitos Vietnames” para combater “o imperialismo norte-americano”. Guevara participa em guerrilhas em África, experiências sem sucesso. E posteriormente faz o plano de, a partir da experiência cubana, estabelecer uma guerra de guerrilha na Bolívia. A sua presença é conhecida pela CIA, não consegue nem apoios locais suficientes na zona onde começou a implantar-se, e conta no país com a oposição do partido comunista local, que não foi tido nem achado para o projeto e o tipo de ação revolucionária que estava planificada. No dia 9 de outubro de 1967, Che Guevara é fuzilado na Bolívia por tropas locais assessoradas por agentes da CIA. Estava suprimida a tentativa de a Revolução Cubana se expandir na América Latina. Só em 1979 é que outra guerrilha, os sandinistas, tomam o poder num outro país da região, a Nicarágua.
No entanto, tropas cubanas envolvem–se em combates, apoiando regimes revolucionários em muitos países de África, como a Etiópia e Angola. Nesta antiga colónia portuguesa têm um papel determinante na guerra ao derrotarem a invasão de tropas sul-africanas entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988, na maior batalha realizada em solo africano. Mas a Operação Carlota, nome com que foi batizada a ida de tropas cubanas para Angola, em 1975, começou em novembro desse ano, com os cubanos a conseguirem deter, com os combatentes das FAPLA ( braço armado do MPLA), as tropas da FNLA e do Zaire a norte e as da UNITA e África do Sul a sul, que marchavam num movimento de pinça para tomar Luanda. Os cubanos também impediram um alegado golpe de Estado da fação pró-soviética do MPLA, dirigida por Nito Alves, a 27 de maio de 1977, contra o presidente Agostinho Neto. Na vaga de repressão que se seguiu, dezenas de milhares de angolanos foram presos e torturados, e muitos mortos. Em Angola combateram mais de 300 mil cubanos, a que se somaram cerca de 50 mil colaboradores civis.
Em 1980 dá-se a primeira crise migratória. Depois de várias tentativas de cubanos de entrarem na sede da delegação dos EUA em Havana, o governo anuncia que deixará sair para os EUA todos os cubanos que o desejem, e mais de 125 mil pessoas afluem ao porto de Mariel para irem para os EUA. As autoridades norte-americanas acusam Cuba de ter aproveitado para se livrar dos presos de direito comum e criminosos, e de os ter enviado para os EUA. A segunda crise migratória dá-se depois de incidentes a 5 de agosto de 1994, no bairro popular de La Havana. Depois de a rádio anti-castrista de Miami ter anunciado que vinham barcos buscar cubanos para irem para os EUA, dão-se incidentes em Havana, os primeiros em 46 anos de revolução. Fidel Castro vai, com a escolta, ao local dos incidentes. O governo cubano acusa os EUA de não cumprirem os acordos migratórios, que previam uma quota de dezenas de milhares de emigrantes cubanos para os EUA.
Nessa altura, a Revolução Cubana estava já bastante enfraquecida. Em 1980 tinham decorrido processos na sequência dos quais militares importantes do exército cubano, como o general Ochoa, tinham sido fuzilados, acusados de envolvimento no narcotráfico. E sobretudo, em 1991, o grande apoio da Revolução Cubana tinha ruído como um baralho de cartas. O fim da União Soviética tinha deixado o país na penúria. Os soviéticos compravam grande parte do açúcar cubano e forneciam a preços especiais o petróleo de que a ilha necessitava. Fidel Castro confessa numa entrevista que a queda da URSS foi o pior momento da revolução: “A maior crise enfrentei-a com 60 anos [o fim da URSS].”
Apesar disso, a revolução sobrevive. É declarado o chamado “período especial”, com uma série de racionamentos e medidas de austeridade. Pela primeira vez, o dólar é legalizado, para se conseguir obter as divisas que circulam no mercado negro e na economia paralela. Faz-se a grande aposta no turismo. Isso não se faz sem custos sociais, com o aumento das desigualdades entre a população que consegue os dólares e aqueles que não têm acesso a eles, e sem o crescimento de uma certa degenerescência social: há um brutal aumento da prostituição. Na altura, estive mais de um mês em reportagem na ilha, e o bispo de Havana, Carlos Manuel de Céspedes, descendente de um herói da luta pela independência, disse-me com ironia: “Os meus amigos comunistas dizem que nada mudou com a abertura económica; eu respondo-lhes que, com a mudança das relações de produção, a superstrutura, a política, não pode ficar na mesma.”
Neste último combate pela sobrevivência da revolução, a que chamou a batalha das ideias, Fidel Castro tentou fazer a quadratura do círculo: manter um Estado comunista numa economia cada vez mais capitalista.
Em 2006, Fidel cai. Adoece e passa provisoriamente os poderes para o irmão. Em 2008 demite-se oficialmente dos seus cargos. A sua última aparição é em abril de 2016, no congresso do Partido Comunista Cubano, onde alude à sua morte: “Em breve serei como toda a gente.”
No seu último artigo, publicado em outubro de 2016 no “Granma” escreveu: “De Cristo conheço bastante, pelo que li e me ensinaram em escolas regidas por jesuítas ou irmãos de La Salle, de quem escutei muitas histórias sobre Adão e Eva, Caim e Abel, Noé e o dilúvio universal, e o maná que caía do céu quando pela seca e outras causas havia escassez de alimentos. Tratarei de transmitir em outros momentos mais algumas ideias sobre este singular problema [da religião].” Mas não o fez. Morreu como todos os humanos.