Começou na rádio, passou pela SIC, RTP e TVI. Deu a cara por programas tão diferentes como “A Praça Pública”, “A Noite da Má Língua”, “Gregos e Troianos”, “Big Brother” e “Queridas Manhãs”. O seu percurso é parte da história da televisão nas últimas décadas. Lançou uma revista, com o seu nome, em formato eletrónico.
A última edição da sua revista eletrónica é sobre as mães, porquê esse tema?
A escolha do tema é pessoal: tinha jurado a mim própria falar de uma forma clara, mas nos meus termos sobre o drama que tumultuou a minha vida como mãe e como mulher. Durante muito tempo tive que viver com a doença das minhas filhas. É a primeira vez que falo abertamente sobre o que tem sido estes 12 anos. É algo de muito privado que senti necessidade de partilhar.
Porquê essa necessidade?
Quando a Carolina foi internada foi num hospital público e imediatamente alguém deu a informação à imprensa, que começou a andar à volta de nós. Antes que isso se tornasse um assunto mal explicado, disse em antena que tinha este problema familiar. A partir dai desencadeou-se, como é normal nestas situações, uma grande expectativa das pessoas que queriam informação sobre esta matéria [anorexia], muita gente que tinha familiares com o mesmo problema e que até tinham padecido do mesmo mal apresentaram-se para partilhar a experiência. Quando dei por mim estava numa crista da onda que já não conseguia deter. Preferi então comunicar a situação nos termos em que achava que o devia fazer [na revista, Júlia Pinheiro confessa ter-se sentido culpada com a doença das filhas e esmagada pela confirmação que “não basta o amor”, para ultrapassar a anorexia].
Não é perverso utilizar a vida como material de comunicação? Não permite que outros a usem?
Mas de alguma forma já chegamos lá. As redes digitais vieram obrigar-nos a fazer uma comunicação de maior proximidade. Há pessoas que mostram tudo, há outras que não mostram tanto, mas tu para conseguires um fluxo de comunicação, com determinado público, tens de dar alguma informação sobre a tua vida.
Mas isso não é vender a alma ao diabo?
Não. Trata-se de propiciar situações em que se pode mostrar um bocadinho mais de ti dentro das tuas próprias balizas. Acho menos perverso do que ser surpreendida com uma capa qualquer de um jornal de grande tiragem ou de uma revista da especialidade. A partir do momento que estamos todos os dias sob o olhar do público tem de haver uma certa verdade e uma espécie de mediação constante sobre aquilo que podes contar sobre ti próprio. Há 20 anos que faço este filtro. Não falei disto [a doença das filhas] mais cedo, porque isso tinha custos em relação às minhas filhas e elas ficariam expostas. Acho que no limite temos algumas obrigações pelo facto de todos os dias invadirmos a casa das pessoas…
Não entra na vida delas…
Tenho pessoas sentadas no meu estúdio que aceitam revelar aspetos da sua vida, porque acham que sou a pessoa certa para estar com elas nessa altura. No contexto atual, não vale a pena iludirmos-nos, nem ter uma atitude de falsa virgem sobre o facto de se ter de mostrar alguma coisa da nossa vida. E há uma coisa que me preocupa, cada vez mais: Qual é a perceção que as pessoas têm sobre mim? Já estou há muitos anos no ar, e há uma geração que não me viu a fazer outros programas sem ser grande entretenimento ou day time, e não têm noção nenhuma que pertenço a várias correntes daquilo que é a nossa profissão e que tenho uma história e outras características profissionais diferentes da senhora que fala alto e manda umas gargalhadas na televisão.
Preocupa-a essa imagem?
Preocupa-me profundamente. Se tivéssemos profissionais na área da crítica televisiva que fossem preparados, que conhecessem a indústria, que conseguissem fazer a descodificação do mercado com rigor, e que não fizessem apenas análises sensacionalistas e tabloides do que que é a televisão e os seus protagonistas, podia esperar alguma isenção nas análises que são feitas sobre nós.
Ao revelar parte da sua vida e a saúde das filhas, não está a reproduzir esse mesmo processo de tabloidização?
Não acho. Estou a funcionar dentro das regras, definindo eu própria os limites.
Não deve ser fácil viver com essa total ausência de privacidade.
Não há uma total ausência de privacidade: de um modo geral, Portugal é muito macio na relação que tem com as pessoas que conhecem da televisão. As pessoas são normalmente muito simpáticas. Identificam quando há limites e quando não há. Eu protejo-me muito. Faço uma planificação da minha vida fora da antena, para me proteger um bocadinho e não estar muito exposta. Evito ser “invadida” por selfies, mas mesmo isso, são manifestações de carinho. Não me sinto nada violentada, além de que em muita da comunicação que faço, sem querer acabo de falar de mim própria e daquilo que fiz, dos meus filhos e do marido, porque é impossível evitar isso. A minha profissão exige empatia e proximidade. Estou num patamar que é quase impossível distinguir – “boa tarde” [cumprimenta uma pessoa que passa perto no restaurante onde decorre a entrevista] – um bocadinho a minha vida e a antena, sabendo obviamente onde paro.
Irrita-te que te considerem burra?
Irrita-me muito. Acho que não me consideram burra, mas irrita-me muito que me preguem um estereótipo – que tem a ver com a leitura simplista de que como faço um trabalho que tem uma linguagem fácil e próxima – de que não tenho cérebro ou não tenho a capacidade de fazer outras coisas. Irritam-me análises preconceituosas de colegas, que ignoram o que fiz e o meu historial, e quando tu fazes qualquer coisa, venham dizer: “isso não interessa nada porque é feito por aquela gaja que faz programas todos os dias”.
É um preconceito que vem de trás, mesmo na SIC apresentou um programa de informação, “A Praça Pública” e depois passou para os programas…
Nesse caso foi opção minha, podia ter ficado a apresentar a “Praça Pública” todo o tempo que entendesse.
Mas se tivesse na informação, dificilmente apresentaria o Telejornal.
Que era de resto o meu grande sonho: o que queria, quando comecei isto tudo, era ser pivô de telejornal ou grande repórter, e achei que ainda ia a tempo, mas comecei a fazer televisão muito tarde, comecei aos 30, já não é altura para uma mulher começar a fazer televisão. Mesmo assim, tive alguma sorte. Dentro da redação da SIC, que era a mais jovem do país em que poderíamos achar que não tinha preconceitos e que era arejada, havia muita gente que me olhava de ladecos porque eu tinha vindo da Rádio Renascença em que fazia programas. Para eles nem sequer era uma realizadora de rádio, que era o que eu era, era apenas uma locutora. A certa altura ficas farta de ter de legitimar o teu lugar, em permanência, perante os outros. Deixei de fazer “A Praça Pública” porque percebi rapidamente que aquela redação era uma redação de rapazes, gente muito simpática e que eu adorava, mas dava para perceber que quem ia progredir não eram as mulheres, mas os homens. Repara que os principais pivôs eram o José Alberto Carvalho e o Rodrigo Guedes de Carvalho, só muito mais tarde foram buscar a Clara de Sousa.
Havia outras figuras como a Cândida Pinto.
Mas está a ver como as coisas são injustas, eu fui estagiária na Antena 1, com a Cândida Pinto. Comecei como jornalista de informação na Antena 1, era colega da Cândida. Só como a Cândida teve um percurso todo feito na mesma pista, e eu andei a ziguezaguear em vários sítios, a determinada altura, na área da informação, eu não tinha a mesma legitimidade. Até porque a Cândida já tinha um percurso profissional com muita qualidade na RTP.
Na SIC o Rangel que rompia normalmente com esses esquemas…
Sim, o Rangel era o homem que rompia com tudo. É o Rangel que me desafia para sair da “Praça Pública” para fazer um programa improvável, que eu na altura tive a desfaçatez e o discernimento de aceitar. Era um risco, mas estava na idade de assumir riscos. Pensei que se não me virasse para a área de entretenimento teria sempre a carreira dificultada: vou ter que provar 50 vezes mais que os outros o meu valor. O Rangel dá-me a oportunidade de trabalhar com o Miguel Esteves Cardoso, com o Manuel Serrão, a Helena Sanches Osório, o Rui Zink…tudo aquilo [”A Noite da Má Língua”] era novo e excitante.
É uma área que deixou de fazer.
É uma área que praticamente deixou de existir…
Tem o “Eixo do Mal”, que é o programa mais visto da SIC Notícias…
Mas a certa altura tive que tomar outros tipos de decisões. Já não tinha nada que fazer na SIC. Quando acabo um programa maravilhoso chamado “Filhos da Nação”, muito bem escrito (risos) [o programa tinha como coautor o entrevistador].
Devem ter queimado as cassetes nunca mais vi aquilo em lado nenhum.
Também nunca mais vi um frame daquilo em lado nenhum… Quando isso acontece e estávamos nós nos anos da brasa na SIC, aquilo que me oferecem é ir para as “Noites Marcianas”. Era a evolução natural: tinha feito as “Noites da Má Língua”, “Os Filhos da Nação” e agora deveriam seguir-se as “Noites Marcianas”, e ficaria eternamente como a mulher das noites malditas na televisão, mas percebi naturalmente que estando o Carlos Cruz para fazer o programa, sendo ele uma figura de primeira linha na estação, fosse ele a fazer.
Mas depois substituiu o Carlos Cruz.
Sim, eu fazia parte da equipa. Não sabia, mas estava já a ser preparada para ser sucessora do Carlos Cruz no programa. Estava na cabeça do Carlos e do Rangel. Quando ele se vai embora, li agora as razões na biografia dele, porque tinha uma criança a caminho, estava cansado, e queria ficar mais tempo em casa, entro eu. Mas aí está a acontecer um tsunami televisivo que é o “Big Brother”, que todos os dias está a crescer desalmadamente, fragilizando a SIC, e a fazer com que o meu programa, que na época era um grande investimento, não tivesse o retorno necessário. Com a saída do Rangel, e com o consulado Manuel Fonseca, o programa foi imediatamente cancelado. É nesse altura que o Manuel Fonseca me diz que a estação vai voltar a ter um programa à tarde e que eu iria trabalhar com o Henrique Mendes e a Fernanda Freitas. Fiquei um bocadinho mal disposta, achei que se calhar estava na altura de mudar, comecei a pensar que teria sempre à frente de mim o Carlos Cruz, o Herman José, a Catarina Furtado e a Bárbara Guimarães. Essas pessoas fariam sempre os formatos mais interessantes. É então que aparece o convite da RTP e tomo a decisão tão difícil de sair da SIC. Foi das coisas mais dolorosas que fiz. Vou para a RTP fazer dois formatos muito giros: “Gregos e Troianos” e o “Elo Mais Fraco”. Convencidíssima que ficaria na RTP para todo o sempre.
Ficaste quanto tempo?
Fiquei quatro meses. O Rangel é corrido, mas como sempre nesses processos sou um alvo a abater. Sou convidada pela RTP a ficar mas com uma proposta e um processo que não me agradou.
Porquê?
Era para fazer um formato que eles ainda não sabiam qual era. Curiosamente, o administrador nessa altura é o Luís Marques e o presidente é o Almerindo Marques. Há um célebre dia que reúno com ele e digo-lhe que não gosto da forma como me estão a tratar. Rompo com a RTP e sou de imediato convidada para a TVI. Já tinha sido convidada anteriormente pelo José Eduardo Moniz para a TVI. Estava, ainda, na SIC, fui a primeira pessoa a ser convidada para apresentar o “Big Brother”, mas recusei. Mesmo agora sabendo que aquilo se tornou um marco da televisão em todo o mundo, não estou totalmente arrependida da minha decisão. Era de facto, na altura, uma gaja romântica.
O Rangel fez bem em ter recusado o “Big Brother”?
Ele não percebeu nada do que ia acontecer na altura. O “Big Brother” não era uma tendência de mercado, era uma engenharia financeira essencial para se poder rentabilizar o que é a hora de televisão. Põe-se lá dentro aquilo que se entender, mas aquilo é sobretudo a maneira de uma estação amortizar os custos de uma grande produção. Na época foi um fenómeno de audiências , mas o seu valor para as televisões é mais do que isso: devido às características do programa, o minuto de televisão ficava baixíssimo, porque aquilo é um harmónio e pode ser esticado até ao infinito. Aquilo rendeu milhões de euros à TVI, permitiu a sua recuperação, destruiu grande parte da riqueza da SIC . E foi um erro o Rangel ter recusado o programa.
Passado todos estes anos, não se esgotou o formato?
Não, o que acontece é que o consumo de televisão está a descer, e quem formatou as últimas edições do programa usou um conteúdo muito rasteiro, tipo porno-soft. O reality show é o único género que domina a realidade televisiva há 20 anos, mas depende do recheio que lhe puseres, aquilo é como o rolo de carne e continua a vender em todo o mundo. E há sempre um tipo que consegue meter-lhe mais algum ingrediente criativo. Aquilo é um sucesso planetário. Foi uma burrice, ele não percebeu que o futuro era aquilo. E que por uma questão de gestão de recursos de grelha aquela era a solução. Ele estava numa televisão rica que tinha 50% de share. Se calhar era difícil fazer essa análise à época. É óbvio que hoje é fácil.
E em que contexto vai para a TVI?
Na altura do primeiro convite não fui, o Rangel convenceu-me em 30 nanossegundos, com o Moniz a dizer-me: “está louca, como é que não vem?”. Estava eu neste desarranjo com a RTP e eles [TVI] telefonaram-me: “se você não vem desta, não há terceira”. E é assim que vou parar à TVI, desta vez fui já naquela que não vou simplesmente para apresentar programas: quero aprender os instrumentos da profissão e da indústria e ser um quadro de direção da estação. É assim que vou para a TVI como subdiretora do José Eduardo Moniz.
Trabalhou com dois homens que estavam sempre às turras mas que foram duas pessoas fundamentais da televisão portuguesa: Rangel e Moniz.
Sou uma privilegiada: fui a grande interprete de muitas das ideias do Rangel e do José Eduardo Moniz. Aliás, na TVI fiz todos os grandes formatos até o José Eduardo ter-se ido embora. Só não fiz a manhã. Rangel e Moniz eram pessoas muito diferentes e com visões diversas da indústria, mas são pessoas com quem gostei muito de trabalhar.
São diferentes como?
Falar hoje do Rangel é complicado, ele não está cá. Mas ele tinha uma componente… ele encarava isto tudo como uma missão , aquilo era uma coisa meio romântica e nós funcionávamos como uma tribo de justiceiros, morávamos em Carnaxide todos juntos, ele não tinha limites na sua criatividade e na sua enorme capacidade de persuasão. Mas era um homem de um entusiasmo absolutamente fascinante. O José Eduardo é outro tipo de cabeça. É provavelmente o homem que mais percebe de televisão em Portugal.
É um homem de uma grande lucidez e de um enorme pragmatismo. O Rangel fazia-nos acreditar que a televisão é uma aventura romântica, com José Eduardo Moniz aprendi que a televisão é um negócio com contas muito bem feitinhas ao fim do dia, em que não há loucuras e que se vende o pelo do cão, o cão e os órgãos do cão. E que é preciso, para tudo, uma gestão rigorosíssima. Ele alia, a tudo isso, uma enorme capacidade de trabalho e uma grande criatividade. Pensa fora da caixa. E teve este passo de génio de criar uma industria de ficção num país que vivia sob o jugo da Globo, o que é notável. Criou milhares de postos de trabalho e uma área de negócio que era até aí inexistente. Criou valor puro.
Mas apesar dessa enorme capacidade, a TVI 24 parece ter arrancado com muitas fragilidades…
Mas ele já não estava totalmente com a cabeça na TVI, já foi numa fase final. Estava já em rutura como a administração da Prisa.
Viveu esses momentos?
Sim, sendo que ele nos protegeu muito. Eu fazia parte do círculo mais próximo. Ele tinha muitos diretores, mas tinha um grupo restrito de sete ou oito com quem ele reunia regularmente. Nós íamos percebendo que havia uma tensão muito grande.
A tensão era política, tinha que ver com o “Jornal Nacional” apresentado por Manuela Moura Guedes?
Tinha que ver muito com a questão do nosso estimado amigo José Sócrates, e ele aguentou uma série de embates muito difíceis de aguentar. Primeiro, porque gostava muito daquele projeto e daquele coletivo. Ele parece à superfície menos afetivo que o Rangel, mas é profundamente afetivo: tem uma relação de grande proximidade com as pessoas que estão na sua área de conforto. E ele protegeu-nos muito. E há uma altura que percebemos que há uma rutura. Foi um dia tão apocalíptico como a saída do Rangel, embora não tivesse as massas nos corredores, a estação estava toda com ele. Foi uma violência. Eu aterrada por estar a viver a segunda vez com a saída de um líder carismático.
Durante muito tempo viveu-se a situação estranha que os tipos que mais percebiam de televisão em Portugal, Rangel e Moniz, não conseguiam arranjar emprego no setor.
Acho que pelas mesmas razões exatamente: a genialidade e capacidade de liderança, dos dois, incomodava as administrações. As administrações não querem ser incomodados por homens insubstituíveis.
Depois da saída do Moniz ainda fica.
Fico dois anos. Sou imediatamente convidada para a SIC, pelo Luís Marques. Digo que não, porque achei que não devia. Falei com o Bernardo Bairrão, sou promovida a diretora de conteúdos, propõem-me a direção de programas, que não aceitei. Era um lugar impossível de ocupar depois do José Eduardo sair, e nunca me interessou a direção de programas nos termos em que ela era entendida até há anos atrás, que significava o controlo alargado de grande parte da estação. Nessa altura tinha um programa diário e vivia com os problemas de saúde das minhas filhas, não me sentia capaz desse tipo de trabalho. Fiquei mais um ano. Depois começa a erosão na TVI, que não se refletiu nas audiências, devido ao trabalho único que fez o José Eduardo Moniz durante nove anos.
Foi fácil voltar para a SIC, tinha saído com o Rangel, isso não dificultou o seu regresso?
O meu regresso à SIC fazia sentido naquela altura. Só podia ficar na TVI se aceitasse a direção de programas. Não estava muito confortável. O Luís Marques tinha andando o ano a namorar-me e eu pensei: “fiz 40 anos na TVI, vou fazer os 50 na SIC”, e regressei. Não foram cinco anos fáceis, porque os objetivos principais de ganhar o day time ainda não foram atingidos, mas tenho a perfeita consciência que é um desafio que é trabalhoso, mas estou confiante no trabalho que estamos a fazer.