“Agora que posso recorrer à eutanásia não tenho de usar o revólver.” Laura Ferreira dos Santos recorda este testemunho de uma mulher do Oregon, o primeiro estado norte-americano a legalizar a morte assistida, em 1994. A investigadora e promotora do movimento de despenalização da eutanásia em Portugal – agora nas mãos dos deputados da Assembleia da República – não tem dúvidas de que a legalização da morte assistida poderia permitir um fim de vida menos violento em alguns casos, mas insiste que é preciso separar as águas: “Dizer que seria a solução para o problema dos idosos em Portugal seria cruel, mas em situações em que o suicídio é uma decisão racional, e não algo impulsivo, poderia reduzir o sofrimento dos próprios e dos familiares.”
Em Portugal não se sabe, entre as pessoas que põem termo às suas vidas, quantas o fazem perante o sofrimento causado por uma doença incurável. Mas no que diz respeito ao suicídio entre idosos existe um dado singular: de acordo com o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, 60% a 80% dos casos estão relacionados com depressão, mas a doença física também surge associada ao fenómeno, algo que o PNPS considera ser uma realidade ainda “pouco estudada”.
Laura Ferreira dos Santos diz ter conhecimento de alguns casos. “Soube de um homem que cometeu suicídio após ter uma recaída de cancro. Quando fez os tratamentos pela primeira vez passou por uma experiência que considerou horrível e, apesar de a família o pressionar para isso, não quis voltar a passar pelo mesmo. Neste tipo de situações, acredito que se a eutanásia fosse possível, o desfecho seria menos violento para todos.”
Outros casos que acredita que poderiam ser evitados prendem-se com situações em que o marido mata a mulher, que sofre de doença prolongada, e depois comete suicídio. “Apesar de em Portugal ser algo de que não se ouve falar, penso sempre se não será um pacto de suicídio mais do que violência conjugal, sobretudo quando é referido na comunicação social que eram pessoas que se davam muito bem.” A investigadora alerta ainda que, por detrás dos números de suicídio, há muitas tentativas que deixam sequelas graves, e todo o sofrimento que pudesse ser de alguma forma menorizado seria positivo. Os dados da DGS, por exemplo, revelam que em 2012, último ano com dados, deram entrada nas urgências dos hospitais mais de 3 mil pessoas na sequência de lesões autoprovocadas – quase três vezes mais que as vítimas mortais por esta causa.
Impacto não é certo Nos países que legalizaram a eutanásia não existe muita evidência sobre o impacto dessa medida nos números de suicídio.
A lei belga é de 2002. Em entrevista ao “Observador”, Jan Bernheim, da Faculdade de Medicina Vrije Universiteit, em Bruxelas, referia recentemente ter dados que o levam a crer que, em doentes que sofrem de uma doença psiquiátrica irreversível ou quase irreversível, “a mera possibilidade da eutanásia, a promessa de que a eutanásia será considerada, onde e quando necessária, tem prevenido os suicídios e as tentativas de suicídio, sobretudo as mais violentas”. Agnes van der Heide, investigadora holandesa sobre cuidados em final de vida, não tem a mesma convicção. “A maioria das pessoas que pede a eutanásia não comete suicídio se o seu pedido for negado e a maioria das pessoas que comete suicídio não pede primeiro a eutanásia ao seu médico”, referiu a especialista da Universidade de Roterdão ao i. A Holanda despenalizou a morte assistida em 2001 e parece haver uma redução do suicídio entre os mais velhos. A variação estatística não está estudada.
O suicídio pode ser racional? Laura Ferreira dos Santos já admitiu publicamente que, numa situação-limite e não tendo acesso à morte assistida, preferia tomar medicação letal, cometendo suicídio em vez de se deslocar ao estrangeiro. E defende que o desespero que levará algumas pessoas a pensar o mesmo é diferente dos suicídios impulsivos de quem está com uma depressão clínica. “Não é não ter medo da morte, é não querer viver assim”, diz a investigadora, defendendo que essa convicção devia ser respeitada como acontece com outras do foro religioso, que admite contribuírem para o perpetuar do sofrimento dos mais velhos no país. “Para algumas pessoas, o catolicismo é entendido como ter de carregar a cruz, uma resignação.”
Ricardo Gusmão, psiquiatra, rejeita que o conceito de suicídio racional possa ter uma leitura tão ampla como defendem os movimentos pró-eutanásia e considera que a ideia de que poderia evitar algumas mortes mais violentas contém uma lógica falaciosa. “O que está implícito nesta ideia é que algumas pessoas têm razões muito válidas para se matarem que a legislação viabilizou”, diz o psiquiatra.
Para quem está do lado da barricada da luta contra o estigma da doença mental e a favor da prevenção do suicídio, o conceito de suicídio racional só pode ser interpretado de uma forma “muitíssimo estrita”, diz o médico, entendendo que seria mais adequado usar a expressão “última escolha” e nunca num cenário de sofrimento continuado e depressão. “Um exemplo triste mas bem conhecido é o do dia 11 de setembro, em que é credível que as pessoas que saltaram das torres não tinham dúvida de que iam morrer por asfixia, queimaduras, num sofrimento terrível em que qualquer um de nós percebe o significado de última escolha.”
Gusmão admite que numa situação extrema de doença terminal é possível imaginar que a morte assistida por escolha do próprio possa ser benévola na antecipação da morte natural. Mas sublinha que essas situações são “raras e excecionais”. Na maioria dos outros casos, defende, faltam sobretudo respostas que apoiem as pessoas mais vulneráveis, ao invés do caminho, que tem sido feito, de estender a possibilidade de morte assistida a pessoas e idosos com doenças crónicas não terminais e com doenças psiquiátricas, incluindo a depressão. O psiquiatra alerta para que a forma como se encara a questão resulta de uma filosofia perante a saúde pública, que na sua opinião não é pior em Portugal. “A intratabilidade prevista na lei belga inclui a recusa de uma ou várias modalidades terapêuticas. Cá aplicar-se ia a lei da saúde mental e internamento compulsivo.”
Seja qual for a legislação que venha a ser estabelecida, o psiquiatra defende que o discernimento das pessoas que solicitem a morte deve ser obrigatoriamente avaliada. E argumenta com um estudo que conclui que pessoas que ultrapassaram um episódio depressivo ou outra doença mental consideravam que tinham menos direito de dispor da sua vida que a média. Para Gusmão, os números do suicídio deviam antes fazer investir na literacia em saúde mental para todos, mesmo os mais educados, para que percebam que afeta o discernimento. E em mais cuidados. “Coloca-me muitas dificuldades perspetivar uma sociedade que poderá legitimar a ideia de que ser velho não tem sentido e de que ser cuidado por terceiros é indigno”.
Álvaro Carvalho, com a tutela da Saúde Mental, diz estar aberto à discussão e à ideia de que, para algumas pessoas em situação de doença terminal e intolerantes à dor, recorrer à eutanásia pode ser um pedido legítimo e um fim menos duro. Mas acredita que, mais premente do que viabilizar um “último recurso”, o país deve dar todos os passos para que recursos como bons cuidados paliativos ou bons lares estejam disponíveis. Laura Ferreira dos Santos defende que as pessoas têm de ser informadas sobre todas as hipóteses mas, estando conscientes, devem poder escolher morrer. E recusa que seja preciso esperar por uma oferta total de cuidados paliativos, pois estes nunca serão uma solução para toda a gente, diz. “Há pessoas em que a medicação para a dor não funciona.”
O assunto é controverso e assim deverá continuar. Nos países europeus que avançaram, o cuidado a idosos parece, contudo, ser hoje mais robusto. No ano passado, o think tank Global AgeWatch atualizou o ranking dos melhores países para envelhecer. A Suíça, o primeiro país a legalizar o suicídio assistido, ocupa o primeiro lugar. A Holanda surge na sexta posição e a Bélgica na 24.a. Portugal ocupa a 38.a posição.