Na ausência de iluminações, de erros mais próprios e admiráveis, a voz ainda é esse o signo sob o qual se inscreve o poeta, um certo tom de comando para que a realidade o ouça chamá-la com um tal vigor que a torne insegura, deixando-se comover. Se a cada nova e expressiva metáfora, a sua arma predilecta, o discurso cobre maiores distâncias, quando falamos de voz podíamos falar de ouvido, essa atenção muito educada para as recombinações de sentidos que permitem que se considere um dom da “palavra sísmica” (H.H.). Mas indo a coisas mais chãs, razões de pouco abalo, admitamos que em certos autores talvez devéssemos apreciar sobretudo os ardis com que, à margem até da obra, condenam o mundo a atendê-los.
De António Carlos Cortez diz o seu editor, Pedro Mexia, na antologia de década e meia de publicação, que a sua poesia “é formal, medida, uma poesia do vocábulo, de aliterações, elipses, truques de linguagem que nos ajudam na selva escura”. E se o plural aqui usado é claramente majestático, com aquela descrição não deixa de ser fácil concordar. A célebre afirmação de Wallace Stevens de que o assunto da poesia é o poema, surge em epígrafe a abrir o livro e ecoará sempre servindo de álibi a um poeta que não se livra da teoria justamente porque o poema não passa de uma ambição. O poeta não é mais que um proponente, que não encontra a sua voz, a bênção de um estilo, nenhum ângulo voraz.
Se há um "hiato", como indica Mexia, não é "entre o facto e o poema", entre uma vivência que se perde e que se "transforma através da linguagem poética", o hiato é na verdade a distância entre um autor que procura pôr em disposições regulamentares a noção de poema, mas que com toda a sua “poetização” se mostra incapaz de operar essa passagem. E persiste, batendo às portas, experimentando todas as chaves, pedindo licença, passando tempo na companhia dos poetas, anotando debaixo da luz dos seus versos, como um pajem aflito incapaz de recombinar e confirmar indícios.
É, por isso, uma poesia em que se torna impossível discernir uma assinatura, uma é simultaneamente escrita por todos e por ninguém. Se fosse sujeita ao teste de carbono 14, não haveria qualquer margem de dúvida sobre o tempo em que foi escrita. E essa é a pior das fragilidades de um poeta: ser um mero reflexo engaiolado nas afectações do seu tempo: “foi pelo inverno lisboa/ quando nas ruas a ondulação é um momento de ficar/ e a solidão é um animal a necessitar de ternura./ tu enlouquecias quem passasse/ por não trazeres roupa nenhuma/ por não dizeres qualquer palavra// se eras para mim só essa ausência/ mesmo ao dizer o teu nome/ tu existias Lisboa capital da dor/ com a madrugada nos dentes/ e ao frio dos ossos arrancando/ a roupa a fome a doença”.
Maio de 2016
204 páginas
16,90€
Sucedeu, no entanto, termos escolhido ficar para cá do paraíso
e criar através dos meios da arte a substância ilusória dos sonhos
Henry Miller
aqui não há sinal de paraíso. perdemos a noite
e o dia foi um somatório de palavras gastas
na sombra outras sombras se escondiam dizendo
os nossos nomes. a arte dos versos acabou, dizias.
era como o amor que tínhamos um pelo outro:
não chegaram as duas margens para ser um rio
nem tivemos arte para criar outra substância
sobrevivente a este amor esgotado nem aquele livro
que parecia encurtar a nossa distância sobreviveu.
sem paraíso algum dissemos adeus à cidade
dos espelhos cruéis ainda com os nossos olhos
incrédulos, expectantes mas nenhum de nós olhou para trás
POÉTICA
Como pedra lançada ao mar da infância quando a mãe abria a porta de casa e trazia o vento da rua Como mar agitado que nos seus círculos encontrasse a repercussão das formas antigas e perfeitas até ao ponto em que das margens avistássemos o epicentro da dor e da poesia.
POESIA
Epiderme onde firmamos
as incertezas do presente
Tempo o poema a que voltamos
num pretérito presente
ARTE POÉTICA E NÃO
A poesia é o signo extremado. Estremecendo, plástica, a palavra rasga. Contra a opacidade dos vocábulos não vale a cristalização da frase. Limpo os meus sintagmas e ofereço ao lado de lá da tela a história do lado de cá da fábula. O leitor insiste em reler passagens que, de algum modo, o penetram por imagens, flashes. Assim contra os actos não há argumentos e eu entrego-me por inteiro à dinâmica estrófica, à cadência rítmica, a esse combate entre vida e morte. A linha de fogo, a vida.