É advogado de grandes casos, fundador do PS e ex-administrador do Banco Espírito Santo. Aos 66 anos, Nuno Godinho de Matos decidiu revelar ao i o porquê de nos últimos anos ter começado a desistir de algumas (grandes) lutas. Em 2013, bateu com a porta da sociedade Uría Menéndez por não concordar com o caminho seguido pelo seu compagnon de route Proença de Carvalho, no ano passado desistiu das ações contra o Banco de Portugal e o BES e já este ano abandonou o Conselho Geral da Ordem dos Advogados. Hoje passa grande parte dos seus dias no seu escritório do Algarve. Diz-se um advogado da comarca de Portimão, mas continua a defender em Lisboa arguidos de grandes casos, como é o caso do Furacão.
Começando pelo caso GES/BES. Como estão as ações que intentou contra o Banco de Portugal e o Novo Banco?
Intentei, efetivamente, uma ação no Tribunal Administrativo de Lisboa, como têm de ser todas as ações contra o Banco de Portugal (BdP), dado o estatuto das instituições bancárias. Intentei ainda uma ação contra o Banco Espírito Santo (BES) e contra a nova instituição que foi criada pela resolução, qualquer que seja o seu nome. Escrevi os textos a 3 de agosto, logo após a resolução, com o fulgor da surpresa. Entreguei a ação, mas depois pensei que estava por natureza condenada ao insucesso e por isso desisti da instância.
Desistiu da instância?
Sim, desisti daquela ação, mas não desisti daquilo que lá se pedia, para me reservar o direito de poder vir a intentar uma nova ação caso pretendesse.
Mas tomou uma decisão dessas em tão pouco espaço de tempo?
Fiz o seguinte raciocínio, que envolve uma apreciação sobre os tribunais administrativos e que provavelmente mais ninguém faz: para quê continuar se estes tribunais fazem tudo o que a imaginação humana permite mobilizar para não decidir contra o Estado. Passa-se o mesmo que nas auditorias administrativas antes do 25 de Abril. Em Portugal houve uma grande reforma em que essa filosofia mudou e as condenações contra o Estado passaram a ser normais, mas progressivamente a nova filosofia tem deixado de existir e voltou-se ao que acontecia antes.
Porque acha que aconteceu esse retrocesso?
Isto aconteceu quando os juízes que estavam na primeira instância passaram ao Tribunal Central Administrativo. A filosofia alterou-se e os tribunais administrativos de primeira instância voltaram a defender o Estado tal qual como os filhos defendem as mães.
Mas pondera vir a intentar qualquer outra ação?
Não. Com o progredir do tempo decidi que não intentarei qualquer outra ação.
Vai atirar a toalha ao chão?
Sinto-me obrigado a perder o dinheiro que tinha depositado no BES, é um preço que tenho de pagar para viver em Portugal e para ser português. São 96 mil euros que permanecem bloqueados por força de uma disposição legal expressa que existe na legislação e que permitiu ao BdP fazer aquela resolução. Só que para discutir a ilegalidade dessa disposição tenho de chegar ao Tribunal Constitucional – e eu admito que esse tribunal a venha a declarar inconstitucional. Não é inconstitucional, ela é grosseiramente inconstitucional, andar na rua com aquele diploma legal faz levantar as pedras da calçada.
Mas se for declarado inconstitucional haverá muitas consequências.
O problema é exatamente esse. É que se for, isso terá consequências na relação jurídica de todos os cidadão que tenham posto ações contra o BdP, o BES e a outra entidade que foi criada [Novo Banco]. E por isso não acredito que se venha a declarar inconstitucional. As consequências em cadeia seriam imensas.
Por exemplo?
Poderiam até por em causa a venda dessa instituição criada. Seria uma luta muito bonita, mas, na minha opinião, ausente de conteúdo. Foi por isso que desisti, mesmo que fosse para os tribunais comuns iria ser uns cinco anos de litigância até chegar ao Constitucional.
Mas para fazer justiça nunca deveria ser tarde…
Nessa altura já a nova entidade estará vendida, na posse de um grande banco europeu, provavelmente na posse de um grande banco europeu espanhol. E portanto já ninguém vai ter coragem para por em causa a legislação.
Pensa muitas vezes no dinheiro que perdeu?
Faz de conta que doei esses 96 mil euros a uma instituição de caridade. Hoje tenho pena de não os ter doado ao Gaiato ou à Obra do Padre Américo. Se o tivesse feito, tinha feito um ato digno. Assim, os 96 mil euros foram ao fundo como vítima de um ato indigno.
Disse em 2014 que era fácil desconhecer o que se passava no BES. Quando hoje olha para tudo o que entretanto se soube consegue reconstituir cenas que lhe terão passado ao lado?
A partir do momento em que começaram as audiências públicas – e televisionadas com um espetáculo do Parque Mayer – da comissão de inquérito ao BES passou a conhecer-se um enorme número de detalhes revelados por diversas pessoas. Detalhes de que era impossível conhecer só com a informação que chegava ao Conselho de Administração, de que fazia parte. O BES afinal soçobrou porque concedeu volumes de crédito a empresas do Grupo Espírito Santo (GES) avassaladores. E o GES não tinha condições para pagar.
E não tinha?
Não, isso nunca chegou às reuniões do Conselho de Administração do BES.
Mas só o facto de haver um grande volume de crédito concentrado em empresas de um mesmo grupo era sinal de um risco acrescido…
Claro que sim. E depois de se conhecer o que foi dito na comissão parlamentar de inquérito referente ao grau de financiamento a empresas do GES, nomeadamente à ESI, qualquer pessoa – mesmo sem experiência de crédito – percebe que tinha tudo para correr mal. Como aliás correu.
E entende, passados estes meses, o porquê de se terem tomado essas opções?
Penso que os autores das decisões foram vítimas deles próprios, não conseguiram parar a tempo. E não conseguiram – agora estou a imaginar o que eles pensaram – porque admitiram que se lhes fosse dado tempo para vencer o período da crise económica conseguiriam relançar as empresas do GES e pagar. Precisariam era de mais 3 ou 4 anos.
E acredita que isso poderia ter acontecido?
Sim, a questão é que quando o Banco Central Europeu (BCE) exige ao BES a devolução imediata de 10 mil milhões de euros torna absolutamente impossível a salvação do grupo e consequentemente a do BES. Agora se o BCE fez isso porque quer liquidar os bancos portugueses e pretende que em Portugal não existam bancos de portugueses e que só existam bancos de espanhóis ou de ingleses, isso já não sei. Mas é uma interpretação possível.
Com que finalidade?
Para colocar toda a banca nas mãos de entidades do centro da Europa. Espanha aparece como uma potência na Europa e é um país com a vocação direta de absorver Portugal. Aliás, em Espanha pensa-se que Portugal faz parte de Espanha. Na perspetiva dos dirigentes espanhóis, o 1.º de Dezembro de 1640 foi um acidente histórico.
Teve já tempo para falar com Ricardo Salgado. Já o procurou para trocarem algumas palavras?
Não, nunca falamos desde que tudo isto se passou. Nem ele me procurou nem eu o procurei, embora continue a nutrir por ele muita admiração e respeito.
Mas não gostava de esclarecer algumas dúvidas?
Nunca calhou, nem sequer tenho o número de telefone dele. Ele mora em Cascais e eu em Lisboa. Mas não tenho dúvidas. A única coisa que gostaria de dizer era – e aproveito esta entrevista para o fazer – manifestar a continuação do meu respeito e consideração por ele.
Mas existem pessoas que se afastaram de Ricardo Salgado. Compreende?
O doutor Ricardo Salgado neste momento não tem peste, tem lepra. A própria expiração dos pulmões dele torna-se perigosa para quem estiver ao pé dele e no seio da classe dirigente isso nota-se.
Quanto mais se sobe na hierarquia social, mais cínicas e hipócritas são as pessoas. Ao nível dele estamos no topo dos topos da hipocrisia e do cinismo. Quer das pessoas para com ele, quer dele para com as outras pessoas. É a regra de vida. Essas pessoas, agora que ele caiu nas profundidades do inferno e arde nas chamas eternas, a última coisa que querem é encontrá-lo.
Nos últimos dias falou-se que o Banco de Portugal aceitou sentar-se à mesa com os lesados do BES. O que pensa sobre esta situação?
Sabe, não tenho acompanhado muito. Lastimo imenso esta situação, é um voto pio. Há pessoas que ficaram com as suas poupanças derretidas. Se eu sou capaz de viver sem os 96 mil euros – que foram na prática a herança pela morte do meu pai – entre aquelas pessoas há muitas que não têm esse privilégio.
O que é que espera do atual executivo no caso BES?
Penso que não vai fazer nada, porque não se quer meter no assunto. Era possível ter feito antes de 3 de Agosto de 2014 mas o então governo não se quis comprometer e deixou tudo nas mãos do Banco de Portugal – que para ser justo não poderia fazer melhor do que o que fez. O que deveria ter sido feito era recapitalizar o banco com dinheiros públicos, manter a marca, manter o nome, manter o negócio e daqui a cinco anos ir recuperar. E não foi feito assim porque o anterior governo não se quis meter, a situação deixou o BdP na obrigação de responder ao Banco Central Europeu.
Disse em 2014 que apoiaria António Costa. O que pensa sobre a solução de governo encontrada?
Gosto muito do cidadão António Costa e acho que é muito sério, é muito lutador, trabalhador, inteligente e é um indivíduo muito novo que decidiu dedicar-se à causa pública não para ganhar dinheiro – o que para mim é um fator de suspeita. Isto é o ativo sólido que me leva a ter muita confiança nele. Mas não é possível fazer política sem beber do cálice de todos os defeitos inerentes à atividade política. E se na atividade financeira as pessoas têm de ser hipócritas e cínicas, na atividade política não sobrevive aos patamares de seleção intermédios quem não for hipócrita e cínico, o que significa que para se chegar ao topo tem de se ser um grande mestre do cinismo e da hipocrisia.
Reconhece-lhe esses defeitos?
António Costa terá estes defeitos, mas isso é o instrumento de combate que se utiliza naquela vida. Só em situações muito excecionais um político alcança o topo sem esses defeitos. Foi o caso de Mário Soares e Salgado Zenha, mas esses já eram dirigentes nacionais e grandes figuras antes do 25 de Abril e para chegarem onde chegaram não precisaram de ganhar o seu lugar. Quem começou a carreira politica depois do 25 de Abril é sujeito às regras de competição da atividade política.
Mas como fundador do PS como viu a aproximação ao PCP e ao Bloco?
Na noite em que a solução foi anunciada tive um choque e na minha cabeça só pensava: se soubesse não votava em ti. Mas quanto mais penso nisso mais mudo a minha opinião. Esse foi o preço que Costa teve de pagar para afastar da direção dos destinos públicos nacionais o anterior governo. Vale a pena pagar este preço? Para mim vale, com tudo o que isto tem de positivo e de negativo. Eu acompanho-o nesse julgamento político.
E até onde é que acredita que este governo pode chegar?
Este governo é absolutamente refém da vontade do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda, mas o Bloco parece-me mais aberto à negociação. Quando chegar a discussão de um Orçamento Geral do Estado a impor austeridade aos portugueses o governo cai. Isto em tempo significa que em 2016 vamos ter orçamento – porque se não tudo isto era ridículo – e em 2017 até admito que o PCP assuma um orçamento de retrocesso nas despesas. Mas chegando a 2018 já não acredito que as coisas corram bem. Em outubro ou novembro de 2017 começa a crise política em Portugal e possivelmente o governo cai.
E, nesse cenário, o PS chega a eleições antecipadas em boas condições?
Vai para essas eleições estando no governo, com toda a respeitabilidade e credibilidade inerente a estar no governo, e vai poder vitimizar-se com o discurso: “nós estávamos a tentar salvar o país e fomos deitados abaixo”.
E como é que acompanhou o período de campanha para as presidenciais?
Esta campanha teve o problema genético de começar sabendo-se quem iria ganhar. Nenhum dos outros candidatos teria condições reais para derrotar o professor Marcelo Rebelo de Sousa, quer se goste ou não. E isso acontece pela qualidade do próprio, pela presença e pelo trabalho que desempenhou na televisão – foi um trabalho excecional.
Mesmo apoiando Marcelo, entre os restantes candidatos havia algum que admirava?
Sampaio da Nóvoa, sem dúvida nenhuma. Só o conheci no início da campanha e uma das grandes debilidades dele foi o facto de ter surgido publicamente agora. Mas revelou-se uma pessoa de bom senso, com um raciocínio muito claro e uma motivação muito séria para encarar os problemas do país. Se ganhasse seria um excelente presidente da República.
Porque acha que o PS não o apoiou?
Foi uma excelente escolha que não foi promovida como deveria ter sido, tinha de ser apoiado inequivocamente. Foi um erro o PS ter mantido uma posição ambígua.
Um erro ou a concretização da hipocrisia e do cinismo de que falava ainda há pouco?
Certo. Foi consequência da hipocrisia que é preciso a este nível, mas o resultado dessa hipocrisia vai sair caro, sobretudo ao doutor. Sampaio da Nóvoa.
Mudando da política para a justiça, como vê os tribunais portugueses?
Os tribunais administrativos e fiscais padecem de uma grande patologia que é defender o Estado ao transe. As pessoas assumem, os magistrados assumem a necessidade de defender o Estado. E não é que nesses tribunais não exista corrupção, não existe venalidade alguma. Os juízes e as juízas são tão sérios como os dos tribunais comuns – que são pessoas muito, muito sérias e muito bem formadas. A diferença é que por uma questão de função assumem a necessidade de defender o Estado e dão tratos de polé à inteligência para obter as soluções que em prejuízo das decisões de mérito favoreçam o Estado.
Mas diz que todos os juízes são sérios…
Os juízes dos três tribunais são regra geral pessoas muito sérias, há é um problema intelectual nos tribunais administrativos e fiscais. Mas o mesmo não se coloca nos tribunais de comarca, o que mostra que quando os juízes estão libertos da relação com o Estado decidem com muita seriedade, isenção e competência. É mais comum encontrar uma decisão competente que uma asnática. Isto é a parte boa dos tribunais.
E a má?
É a demora. Então nos administrativos e nos fiscais a demora não mete medo ao susto, mete medo às profundidades do inferno. O próprio DIAP se tivesse de litigar num tribunal administrativo dizia: “não vale a pena, porque o fogo extingue-se antes de eu chegar à decisão”.
O que é que os tribunais portugueses têm de diferente dos dos países onde a justiça é rápida?
Também é frequente em países como França uma ação levar três ou quatro anos em tribunal e, com as instâncias de recurso, não é exagerado chegar aos 6 anos. Em Portugal uma ação no valor de meio milhão de euros intentada hoje daqui a cinco anos pode já estar resolvida em primeira instância, mas está pendente recurso.
Ou seja, mais tempo ainda…
O problema de Portugal é termos uma pendência de mais de um milhão de processos que vem de trás. Um juiz que aterra numa comarca e o escrivão de direito diz-lhe que a lista de processos pendentes é de 300 ou 400 e os distribuídos desde o início do ano são 150 e só faz uma pergunta: “A sotôra quer começar pelos antigos, pelos novos, qual é o seu critério?” Este é o cenário na secretária de todos os juízes portugueses.
E a situação como ficou depois da última reforma?
Antes desta reforma, se é que se pode designar por reforma o que a ex-ministra da Justiça fez, havia 240 comarcas, atualmente só há 23 (só nas sedes de distritos). Ou seja, os processos de valor superior a 30 mil euros e os processos criminais de pena superior a cinco anos migraram para as sedes de distrito, onde os atrasos vão ser imensos. Esses sedes não têm mais juízes e os magistrados que já tinham 400 processos pendentes apanharam com mais 150 ou 200.
Não houve nenhuma virtude?
Nenhuma. A não ser redução de custos, com o fim das deslocações dos juízes. Há outra redução não assumida de curto prazo. As as comarcas que não tinham juiz residente – o magistrado ia lá só uma vez por semana – passaram a ser só um espaço para receber papéis, veja-se o exemplo de Alcácer do Sal. Mas a secretaria do tribunal manteve-se com sete ou oito ou dez funcionários, que atualmente estão a escrever uns nas costas dos outros e a jogar à Batalha Naval. O que vai acontecer é que um dia destes passarão para o quadro geral de adidos e os que estiverem em idade de se reformar são incentivados a reformar-se.
Como tem visto investigações como a chamada Operação Marquês?
É um caso emblemático das piores patologias que apresenta o exercício da justiça no processo crime. Disse ainda há pouco que os tribunais de comarca são isentos e sérios – e são. Mas normalmente não lhes caem processos mediáticos, portanto o problema do protagonismo e da publicidade para a instituição não se coloca para a maioria das comarcas. Só se coloca em Lisboa.
Refere-se às fugas?
Em casos com a projeção deste só pode divulgar informação sigilosa quem é detentor da mesma. E quem tem essa informação é a polícia, o Ministério Público e assessores económicos ou técnico de finanças. Quando estão em causa processos com pessoas muito ricas, poderosas ou ex-poderosas ocorre uma inversão na forma como a entidade detentora do segredo atua.
Mas com que objetivos?
Número um a condenação na opinião pública, número dois a sua promoção indireta.
Mas quem é que acha que se quer promover neste caso?
Dir-lhe-ia o MP. Em Portugal não havia fugas de informação até o conselheiro Cunha Rodrigues ter sido Procurador-Geral da República, também não havia interesse pelos processos penais. O crime era considerado pela comunicação social uma coisa abardinada. É a partir daí que a jornalista Helena Sanches Osório começa a publicar nos jornais dela informações que estavam com o MP. Começa a gerar-se esta patologia, esta promiscuidade entre a comunicação social e o MP. E os próprios detentores de informação começaram a ter um fascínio na publicitação do nome da sua instituição. É uma forma de dizer: Nós temos coragem de ir aos ricos, aos poderosos.
Quem é que não passa informações de certeza?
Os funcionários digo-lhe que não devem ser, seguramente que não é um funcionário do DCIAP que faz isso porque se fosse apanhado a fazer uma coisa dessas destruíam-lhe o coro e o cabelo e era erradicado e afastado. Só pode entrar nesse jogo quem tem a segurança suficiente para saber que não vai ser posto em causa disciplinarmente ou que se o for é só para fingir.
E como vê as críticas feitas por José Sócrates, de que não existem indícios?
Existe uma reflexão muito bem feita pelo desembargador Rui Rangel que diz algo como isto: este processo padece de um defeito que é ter a foz do rio Nilo, uma foz imensa, mas não tem o percurso do Rio Nilo até à nascente. Se eu apenas tiver a foz só posso tirar conclusões com base na aparência final. Julgar não é isso, é uma coisa muito mais séria.
Então o que tem sido esta investigação para si?
O que tem sucedido até hoje foi o engenheiro José Sócrates ser apelidado de corrupto – ultimamente por causa de Vale do Lobo. Agora andam a mendigar o depoimento de um cidadão português que está em Angola [Helder Bataglia] para tentar chegar à prova. Isto evidencia que o raciocínio foi feito do fim para o início. Neste momento apenas há um cidadão que diz que emprestou dinheiro ao ex-primeiro-ministro.
Acha que tudo o que já foi tornado público não é suficiente para em tribunal provar que o acervo em nome de Santos Silva pertenceria a José Sócrates, como defende o MP?
Se forem para tribunal apenas com o argumento de que o dinheiro não é do amigo mas de Sócrates e o amigo olhar para o juiz e disser olhos nos olhos: “Sotôr juiz, vossa excelência é um órgão de soberania decida o que quiser, como quiser e o que melhor lhe apetecer, agora uma coisa eu lhe garanto este dinheiro é meu, emprestei e voltarei a emprestar.” Não há juiz nenhum no mundo digno dessa qualificação que se atreva a condenar.
Certo, mas segundo tem sido tornado público existirão indícios de que aquele dinheiro poderá na prática pertencer a José Sócrates, desde escutas que estarão no processo a movimentações. Basta apenas olhar para o juiz e dizer este dinheiro é meu?
Não, o juiz vai ouvir as escutas, tudo o que estiver registado em escutas feitas legalmente pode ser utilizado. Não me passa pela cabeça que neste processo haja escutas ilegais. O problema é: se o cidadão que é acusado diz que o dinheiro é seu e não de Sócrates, como é que os juízes o vão contrariar? Os juízes não têm poderes divinos. E é por isso que a investigação precisa, como pão para a boca, de alguém que venha dizer que deu dinheiro a Santos Silva que na prática era para Sócrates.
Acha então que é muito difícil.
Se ele teve cuidado de fazer como fez, a ter feito, não ia cometer erros desses. A pessoa que introduziu a grande corrupção em Portugal nunca foi mencionada como corrupto, porque fez a corrupção muito bem feita… O problema da corrupção é se as pessoas tiverem o cuidado de fazer tudo bem feito e não submeterem ao banco o dinheiro nunca lá se chega.
O que acha de haver um procurador de julgamento a acompanhar este caso?
Ah, isso acho muito bem. Não é comum, mas acho muito bem. Uma coisa é julgar um acidente de automóvel e outra é um caso destes. Não espero imparcialidade de um procurador, espero parcialidade a combater aquele arguido e do juiz isenção.
Acha que o objetivo da PGR de por fim às fugas de informação falhou?
É cedo para tirar uma conclusão dessas, porque o caso Sócrates não pode ser usado como regra.
Mas temos também outros casos, como os Vistos Gold…
Mas repare que nesse caso as fugas têm sido muito menores. A verdade é que as fugas de informação não têm acontecido fora do caso Sócrates.
Por que acha que o caso Sócrates é diferente?
Nunca vi ninguém ser tão perseguido como ele. Teve uma excelente imprensa enquanto primeiro-ministro, mas depois passou a ser o mais ultrajado dos cidadãos. Caiu em desgraça e a desgraça em que ele caiu começou a vender. A população em geral não gosta de Sócrates porque ele tomou a decisão de ir para o estrangeiro viver acima das possibilidades dos portugueses médios. E os portugueses fazem logo este raciocínio: Se consegues isso, de onde vem esse dinheiro? E este raciocínio está bem feito, quer eu me identifique com ele ou não – eu por acaso não me identifico.
Enquanto advogado como é que vê a decisão judicial que proibiu jornais do grupo do ‘Correio da Manhã’ de noticiar este caso?
A questão mais difícil é o facto de um jornal ficar amordaçado e os outros poderem continuar a tratar o caso. Mas, na minha opinião, o jornal que foi amordaçado pela decisão judicial tinha entrado numa cruzada contra um determinado cidadão e militava nessa cruzada diária e quotidianamente. Os outros jornais tiveram uma postura completamente diferente, noticiavam o assunto e não sistematicamente. Aplaudo por completo a decisão.
Abandonou a defesa da ex-ministra da educação Maria de Lurdes Rodrigues, num processo em que a Relação de Lisboa decidiu há poucos dias a absolvição. Houve algum problema?
Em outubro de 2013 disse ao doutor Proença de Carvalho, de quem a doutora Maria de Lurdes era cliente, que queria sair da Uría Menéndez.
A sua saída aconteceu por não se rever na lógica da empresa?
Tem tudo que ver com o facto de não me rever nem me sentir bem no modo de coexistência no interior daquela empresa de venda de serviços jurídicos. Acabei o curso em 1973 e andei a brincar à política entre 1973 a 1978 e percebi que tinha de abandonar essa atividade se queira manter a minha isenção e a minha faculdade de ganhar o pão de cada dia para os meus filhos.
É aí que se cruza com o doutor Proença de Carvalho.
Quando fui para a minha profissão pedi ajuda ao doutor Proença de Carvalho e trabalhei com ele de 1978 a 2013. No escritório dele até 2010 – onde fiz a minha vida toda – e na Uría de 2010 a 2013. Devo-lhe tudo o que aprendi e tudo o que fiz até 2010. Nesse ano fundiu-se com a Uría e levou um ativo: o seu prestígio, a sua qualidade, a circunstância de ser o último grande advogado português –a par, talvez, do doutor. Lopes Cardoso no Porto. E a Uría queria beneficiar disso tudo e ficar com a sua carteira de clientes. Mas havia um passivo que era uma chatice para a Uría.
O senhor?
Exatamente, as pessoas que o acompanharam e que eram uma chatice para a Uría. Não tinham interesse nenhum para a empresa, mas como queriam ficar com a carne tinham de levar com a gordura. E dentro da gordura estava eu.
Porque diz ter sido gordura, um passivo para a Uría Menéndez?
Não tenho dúvidas de que era. Repare, nos três anos em que estive na Uría, não me pediram sequer que apanhasse um papel do chão. Trabalhei durante esse tempo apenas e só com os casos que eu trazia, a Uría não me pedia para fazer nada.
Mas ainda se aguentou lá três anos…
Sim, no primeiro ano pensei: Nuno, tu só cá podes ficar enquanto te pagares, enquanto deres à Uría em faturação mais do que te pagam em honorários. Não é que me tratassem mal, foram sempre corretos, eu é que não queria ficar a dever um cêntimo àquela empresa. Nos três anos em que lá estive dei sempre em faturação cobrada 150% daquilo que ela gastou comigo, mas no terceiro ano percebo que não vou conseguir continuar a fazer isso. Os meus casos estavam a acabar e eu não ia ter capacidade de remunerar a Uría naquela percentagem. E em outubro decidi vir embora.
Refere-se à Uría como uma empresa de venda de serviços jurídicos. Porquê?
Entendo que estas entidades com 80 associados ou 100 associados não são escritórios de advogados. São shopping centers da prática dos atos jurídicos. Têm pelo lado positivo muita competência e muita dedicação ao trabalho. Exigem aos associados uma entrega que significa entrar as 10h e sair quando for possível. Do lado negativo, estão os direitos dos trabalhadores: é a remuneração mensal e acaba aí.
É um trabalho precário?
As pessoas estão numa permanente insegurança sobre o que vai ser o mês seguinte, porque podem ser despedidos a qualquer hora e a qualquer momento. Quando um sócio principal ou sénior toma de ponta um associado organiza-se para correr com ele. Este regime de vida é assim em todas as sociedades porque a lei o permite, faz com que as pessoas vivam numa permanente fobia de competição umas com as outras. O único valor considerado, no final do mês, é quanto é que tu faturaste. E eu para faturar tenho de trabalhar e para trabalhar o sócio tem de me dar trabalho.
Sente que os advogados vivem aprisionados neste sistema?
Sim, por isso eu digo que isto é uma lógica empresarial pura e dura baseada na mais rigorosa e vertiginosa competição.
Ali os ordenados são melhores e é isso que os prende. Um jovem com 25 anos que acabou um curso na Clássica de Lisboa com média de 14 e sabe que se for para um destas empresas pode ter um ordenado de 2500 euros à entrada e que se for para um escritório de advogados nem ordenado tem. Mas ao entrar neste estilo, hipotecou a vida.
Mas não são apenas jovens nessas sociedades…
Em 2010 quando entrei para a Uría já tinha 60, em condições normais nunca teria entrado. Querem pessoas acabadas de tirar o curso, com 23 ou 24 anos, para formatar dentro daquela filosofia. Para que façam a carreira por dentro. Como vão buscar pessoas inteligentes, competentes e estudiosas, claro que depois têm bons associados, gente qualificada.
A sua relação com o doutor Proença de Carvalho já não é a mesma?
Habituei-me a respeitar o doutor Proença de Carvalho por indicação do doutor Salgado Zenha, por quem nutro uma admiração imensa. Mais tarde, encontrei o doutor Proença de Carvalho na manifestação pela libertação do jornal República, que foi ocupado pela UDP (União Democrática Popular) e toda a vida eu me considerei um compagnon de route, quer de política quer de trabalho, do doutor Proença de Carvalho. Portanto tenho por ele uma grande amizade estima e consideração. A determinada altura da vida dele faz uma opção que eu compreendo e – embora não goste – foi a melhor e a mais lúcida.
Juntar-se à Uría Menéndez.
Sim, o raciocínio que terá feito foi: acabou o tempo em que as clientelas se transmitem aos herdeiros com o advento das sociedades e muitos dos meus clientes, quando acabar de trabalhar, vão para as sociedades. Então se é assim, e ele tinha razão ao pensar que seria assim, eu vou integrar-me numa grande sociedade com a qual negoceio as condições da minha integração e levo os meus herdeiros para lá. E para a Uría foi ótimo, há três anos o que veio do escritório do doutor Proença representava 40% da faturação da Uría Menéndez.
Mas porque não lhe agradou a decisão?
Porque nessa opção havia um pequeno problema, uma gordura. Um homem que estava ao seu lado, que tinha 60 anos e que para a Uría está nos antípodas do que a empresa quer, contrariamente ao que acontece com os seus herdeiros que são pessoas novas. A Uría também não gosta do crime, acha isso desprestigiante. E eu sou conhecido em processos penais. Eu estava a mais, mas as pessoas na Uría nunca me fizeram sentir isso. E acredito que até estivessem dispostas a aguentar-me sem me dizer o que quer que fosse, mas deram-me um sinal claro de que não queriam que eu trabalhasse lá ao não me darem nada para fazer.
O doutor bateu com a porta da Ordem dos Advogados há poucos dias, num ano de eleições. Porquê?
Aceitei fazer parte dos órgãos da Ordem dos Advogados – já tinha passado por lá há uns anos – porque dado o conhecimento que tenho destas empresas de venda de serviços jurídicos entendi ser das poucas pessoas que estava em condições de tentar lutar pelos direitos dos associados e dos sócios de indústria. Ninguém fala na precariedade da relação de trabalho dos associados e dos sócios de indústria dessas empresas comerciais.
Mas não conseguiu?
Percebi que as prioridades do Conselho Geral de que eu fazia parte não tinha como prioridade esta minha preocupação. Houve um momento em que a perceção dessa incompatibilidade de prioridades se tornou muito evidente e eu entendi que tinha de vir embora.
Quando?
Foi uma reunião do Conselho Geral de 8 de Janeiro, em que manifestei as minhas prioridades e vi que a totalidade do Conselho Geral – não é que discordasse – não sufragou a minha prioridade. Só encontrava sentido na minha presença nos órgãos da ordem se fosse pela tentativa de estabilização de direitos dos associados e os sócios de indústria nestas empresas vendedoras de serviços jurídicos.
E porque é que essa sua prioridade não foi sufragada pelo Conselho Geral?
Primeiro porque as pessoas não estão habituadas a falar nisso, estas empresas são aliás sempre definidas eufemisticamente como sociedades de advogados. Depois, porque se reparar, as dez principais sociedades de advogados são autênticos centros de poder silencioso. Esse poder grande e difuso é muito sedutor, muito tentador e com facilidade gera apetência pelo mesmo. No meu caso não me seduz porque já não tenho aspirações, sou um velho, o meu destino é ser advogado na comarca de Portimão, estou fora do esquema de ascensão social e de ambição de participação no poder. É por isso que tenho uma liberdade de expressão muito superior ao dos que estão tentar subir a escada da relação com o poder.
Decidiu agora afastar-se de Lisboa, passando grande parte do seu tempo em Portimão. Qual o motivo?
Portimão tem praias maravilhosas, tem sol, tem água como não existe noutra parte do mundo. Por isso decidi ser advogado da comarca de Portimão, com escritório na cidade de Lagoa e acho a cidade adorável. Por norma só venho ao escritório de Lisboa à segunda-feira.