Vivem a vida pé ante pé. O som da chave na porta de casa é o som da angústia e do medo. Vem invariavelmente carregado de gritos, pontapés, murros, ameaças. No dia seguinte, a maquilhagem e os óculos escuros esforçam-se por esconder a certeza que a luz do dia traz. Mais um dia para sobreviver. Pode ser que o som da chave na porta, logo à noite, seja outro.
Para muitas, o dia seguinte não chega. Em 2014 morreram em Portugal, em contexto de violência doméstica, 40 mulheres. Quarenta e seis sobreviveram a tentativas de homicídio. Em 2015 foram mortas 29 mulheres e registaram-se 36 tentativas de homicídio. Em mais de 80% dos casos, foram mortas às mãos de quem, um dia, lhes jurou amor e a esperança de um futuro conjunto. Espancadas, estranguladas, asfixiadas, imoladas, esventradas. Os números são avassaladores, mas bastava uma para já ser demais.
O fenómeno da violência doméstica, ainda que possa encontrar maior expressão em determinados grupos sociais, atravessa estatutos socioeconómicos, grupos etários, regiões e mesmo géneros. Os homens são igualmente vítimas. Os números conhecidos ficarão certamente muito aquém da realidade. Sabemos que a vergonha e a imagem social impedem muitos de apresentarem queixa. Bastantes não se percecionam sequer enquanto vítimas.
Mas o reconhecimento destas situações não pode escamotear o facto das mulheres, por serem mulheres, estarem mais vulneráveis às situações de violência doméstica. Porque são mais atingidas pela pobreza e exclusão social, por se encontrarem mais frequentemente em situação de dependência económica, por viverem numa sociedade ainda conservadora, patriarcal e que continua a imprimir à mulher um papel eminentemente tradicional. Esta conceção de mulher tradicional será provavelmente uma das principais causas desta vulnerabilidade porque traz impregnada a ideia de que “entre marido e mulher, não se mete a colher”. Apesar de a violência doméstica ter sido enquadrada enquanto crime público no início de 2000, por unanimidade e por proposta do Bloco de Esquerda, e de ter a partir daí passado a fazer parte da agenda política, a aceitação social de desavenças entre casais e a ideia de que o “chefe da casa” lá terá as suas razões ainda não foram totalmente erradicadas.
Se, por um lado, os avanços dos últimos anos nas políticas e medidas de proteção às vítimas de violência doméstica foram consideráveis – registe-se, por exemplo, no final da legislatura passada o enquadramento, igualmente por proposta do Bloco de Esquerda, da violência doméstica nos objetivos e competências dos Conselhos Municipais de Segurança –, sabemos também que muitas das mulheres mortas nos últimos anos já estavam sinalizadas pelos serviços de apoio competentes.
O falhanço na sua proteção deve convocar-nos, a todas e a todos, para pensarmos e reinventarmos a sociedade em que vivemos. A mudança de paradigma ganhou com as alterações legislativas, mas importa agora convocar os órgãos de proximidade, disponibilizar meios, agilizar procedimentos, apostar na especialização e envolver toda a sociedade. Trilhar o caminho para uma efetiva igualdade de género passa por intervirmos, mas também por sentirmos como nosso o medo do som da chave na porta.