Carminho. “O fado é a minha salvação”

Carminho. “O fado é a minha salvação”


O fado não é a sua profissão. É a sua forma de vida, a sua salvação. 


Da Carminho, claro. Porque em casa, junto aos seus, mesmo aos 31 anos, continua a ser a Carmo Rebelo de Andrade. Tinha 12 anos quando subiu ao palco pela primeira vez e nunca mais deixou de cantar. Nem de perseguir essa sensação que é ter uma plateia a aplaudi-la. No dia 27 sobe ao palco do Campo Pequeno para cantar a sua verdade.

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No próximo dia 27 sobe ao palco do Campo Pequeno, naquele que será o maior concerto que alguma vez deu em Lisboa. Como são passadas as horas que antecedem um espectáculo deste?

Numa busca de grande tranquilidade. É um marco importante. É uma sala maravilhosa, no centro de Lisboa. Para mim, todos os concertos são mágicos porque eu adoro o que faço. E já me sinto tão familiarizada com o espaço que é o palco e com os meus músicos e com as canções que canto, que é sempre um grande prazer. A grande diferença, neste caso, é que me vou apresentar à grande cidade, às pessoas que me viram nascer e que me continuam a ajudar a crescer no fado e na vida. Tudo isto imprime uma emoção muito grande de poder devolver. E este foi um disco no qual trabalhei muito, não só a fazê-lo mas também depois, a amadurecê-lo. Sinto-me confiante por poder apresentar este disco aos meus e à minha cidade.

E sente que não foi apenas a Carminho que teve de amadurecer este disco – “Canto” –, mas também ele amadureceu para os ouvintes. Isto é, não foi um sucesso imediato, mas antes um disco que se foi entranhando?

A minha pretensão não é fazer sucessos grandes e curtos, mas sim uma carreira que dure a minha vida inteira. Claro que o público é que manda, ninguém pode dizer o que vai acontecer. Mas as minhas escolhas são na busca de uma tranquilidade e constância de amor pelas canções, que por sua vez me dá vontade de as interpretar.

Essa necessidade de tranquilidade é um reflexo da mulher que é hoje, aos 31 anos, e que é diferente da mulher que era quando lançou o primeiro trabalho, “Fado”, em 2009?

Sim, sem dúvida. O primeiro trabalho era uma evidência daquilo que eu era. Tive 25 anos para preparar o primeiro disco, eram os fados que cantava com a minha mãe. A partir daí sou eu a procurar o que quero dizer às pessoas. Com grande alegria tenho pessoas que me ouvem e portanto sinto que tenho de escolher bem o que lhes quero dizer e tenho de estar confortável com as minhas escolhas, tenho de sentir que lhes estou a dizer a verdade. Para mim a verdade é a coisa mais importante do mundo. A verdade não é para todos, mas dizer a verdade tem de ser uma tentativa constante. Na viagem à volta do mundo que fiz, aos 21 anos, conheci milhares de pessoas diferentes e todos os dias alguém me perguntava quem é que eu era. E eram pessoas que provavelmente nunca mais veria e por isso todos os dias eu tinha oportunidade de me reinventar. Podia ser astronauta, empregada de mesa, ser rica, pobre… Optei por dizer a verdade e ver quais eram as reacções. Percebi que era uma maravilha poder surpreender os outros com aquilo que eu realmente era. No fado, o meu grande objetivo é cantar a verdade e para isso tenho de me conhecer.

Na juventude é mais fácil fugir à verdade de quem somos?

Quando somos mais novas não temos noção do tempo, achamos que somos imortais. Não temos consciência do fim, da precariedade deste corpo e da vida. Pensamos que somos invencíveis. Mesmo assim, acho que toda a vida tentei conhecer-me. A viagem de um ano que fiz, quando tinha 21, foi fruto desse desejo de conhecer-me. Estava muito longe de perceber qual era o meu papel no mundo.

Esse desejo de que falava, de ser criteriosa na escolha das palavras que canta, contraria a ideia que ainda muitos têm de que a fadista apenas debita palavras dos outros.

Acho que o intérprete é tão importante como o autor. Interpretar é pegar nas palavras dos outros e torná-las nossas. Isso também é uma arte. Não me sinto menor por usar poemas de outros porque quando os escolho, escolho com verdade, com amor. E torno-os meus.

Há medida que os anos passam essa escolha é mais consciente?

Não sei. Acho é que tenho mais coisas para dizer agora. Tenho mais vida, mais emoções… A SIA, que é uma cantora que adoro, tem uma canção que fala de um elastic art e acho que é mesmo assim: o coração não tem fim. Não concordo com o cliché de que é preciso ser vivida para cantar o fado, mas quanto mais vida o intérprete tiver, mais hipóteses tem de dar o sentimento certo a cada palavra.

É curioso falar da SIA porque ela tem um percurso errante. Começou como uma voz alternativa e compositora para outros artistas e agora protagoniza duetos com alguns dos mais comerciais DJs do mundo. Imagina-se a fazer parcerias assim inusitadas?

Acho que já fiz algumas. No mesmo ano cantei com o Nicolas Jaar e o José Carreras.

A verdade é que o seu percurso tem sido marcado por uma série de encontros felizes.

Muitos, mesmo! Já gravei com o Chico Buarque, com o Milton Nascimento, com a Nana Caymmi, como Pablo Alborán… Até já fiz um dueto com o Fernando Ribeiro, dos Moonspell! E foi interessantíssimo. O que sinto é que o fado me liberta, é a minha casa, é onde me sinto completamente à vontade. Ponham-me a cantar o fado que quiserem, é a minha linguagem.

Uma das parcerias que mais a projectou foi com o espanhol Pablo Alborán, com quem cantou o tema “Pérdoname”.

Tenho um orgulho imenso na canção que fizemos juntos. Apesar de ter ganho proporções mainstream, no início eram só duas pessoas que se identificaram e ficaram amigos. Ele tem raiz andaluza e é um cantor fabuloso. Eu levei um pouco da minha tradição. O Pablo podia ter ido buscar uma pessoa a Espanha, mas foi pelo que o que o emocionou. Nunca imaginámos que atingiria a proporção que atingiu. E é giro ver que houve um público que nos descobriu através daquela canção. Já tinha cantado bastante em Espanha, mas a partir daí senti uma atenção maior por parte das pessoas. E o mesmo aconteceu com o Pablo aqui em Portugal. Fico muito feliz com tudo isto. Foi um grande orgulho fazer parte de uma canção que serviu de ponte entre os dois países.

Uma outra parceria surpreendente foi com o Chico Buarque. Como surgiu esta oportunidade?

Fui convidada para participar no concerto do encerramento das Festas de Lisboa, na Alameda. Foi aí que conheci o Milton [Nascimento] que, para mim, é um deus musical. Além do Milton, conheci também algumas pessoas que trabalham com o ele, nomeadamente o manager João Mário Linhares, mas também o Vinicius França, manager do Chico. Depois do concerto, o Vinicius perguntou se eu gostava que ele me representasse no Brasil. Era o manager do Chico Buarque e estava a perguntar se eu queria que ele trabalhasse comigo! Entretanto começámos a falar em editar o disco no Brasil e ele perguntou-me qual era o meu sonho.

Leia a entrevista na integra na edição de fim-de-semana do i