João Salaviza. “Só consigo filmar pessoas com quem me apeteça beber uma cerveja”

João Salaviza. “Só consigo filmar pessoas com quem me apeteça beber uma cerveja”


Falar de João Salaviza neste momento é falar de David. O protagonista do seu novo filme é praticamente o seu filme. “Montanha”, que amanhã chega às salas de cinema, é um retrato profundamente realista da vida de um adolescente.Não porque seja como todos os outros, mas por ser David   


Há quem rogue pragas a todos os pais cujos filhos se aproximam “daquela altura”. As birras, as mentiras, as manhãs em sobressalto por não os verem na cama, as faltas na escola. As análises psicológicas e sociológicas estão todas feitas. O que JoãoSalaviza propõe é que olhemos a adolescência através de David. Não se ache, no entanto, que há um propósito maior. É um filme sobre um jovem dos subúrbios que começa a sair à noite, a descobrir o tabaco e as amigas que não são apenas amigas. A sua abordagem íntima, o modo experimental de filmar, tudo isso afasta “Montanha” dos lugares-comuns. Explicações à parte, nada como ir ver a primeira longa-metragem do realizador português de 31 anos – “Arena” e “Rafa” são as curtas premiadas que a antecederam.

Há quanto tempo começou a idealizar este filme?
Mais ou menos há quatro anos. Um bocadinho antes de ter filmado o “Rafa”. Lembro-me de durante a rodagem dessa minha última curta-metragem ter ficado claro para mim que esse filme tinha pontos de contacto com esta longa-metragem. Por um lado, por este percurso meio mitológico do miúdo que sai da infância, cruza um rio e se perde numa zona desconhecida. Por outro, por estar a filmar uma longa, com maior complexidade. Isto para dizer que quando cheguei ao fim da rodagem do “Rafa” já sabia que ia gravar este filme.

Podemos quase dizer que desde a sua primeira curta que anda a pensar na sua primeira longa…
Não. Se calhar, mas sem ter consciência disso, porque depois olho para o “Montanha” e não acho que seja um filme radicalmente diferente das minhas curtas, embora nada disto tenha sido pensado de uma forma programática. 

Houve algum momento particular que o tenha feito despertar para “Montanha”?
Sim, houve principalmente a sensação de que um corpo podia contar a sua própria história. No fim do “Rafa” ele pega num bebé ao colo, e esta imagem é uma espécie de síntese do que pode ser a infância pela forma desajeitada e insegura como pega no bebé, mas ao mesmo tempo aquilo antecipa a maturidade. Um corpo pode ser ao mesmo tempo muitas coisas: pai, filho, irmão mais velho.Ao filmar o “Rafa” percebi que essa podia ser a base para o “Montanha”. 

A partir desse momento, como se prepara um filme?
Acho que o percurso de preparar e fazer um filme é uma espécie de círculo enormíssimo com inúmeras variáveis e acidentes, para se voltar um bocado à origem. O mais difícil num filme é não perder os primeiros impulsos, mas também não ficar demasiado agarrado a eles. Para mim é fundamental que a realidade se imponha ao cinema, mais que o oposto. Ando muitas vezes atrás de um filme, ainda que, como neste caso, tenha estado a escrever um guião sobre um miúdo que ainda não conhecia, mas sabia que em algum momento nos íamos encontrar. 

Quando se deu esse encontro entre o João e o David? 
Vi mais de 400 miúdos para escolher o David. O David foi o quarto ou o quinto e mal o vi fiquei fascinado, ou seja, ele tinha um lado físico, uma espécie de resistência, um mistério qualquer que nunca largava. Aí senti que estava muito preso ao universo infantil e eu queria um miúdo a meio caminho entre a infância e a adolescência. Alguns meses mais tarde voltei a vê-lo e ele tinha crescido. E aí percebi que ou filmávamos logo ou ele ia passar para outra fase. Não tinha plano B, se não fosse com oDavid o filme provavelmente nem tinha existido.

“Montanha” aborda a adolescência. Procurou confrontar-se com a sua adolescência ou com esta num sentido mais geral?
Não acho que o cinema sirva para fazer terapia dos realizadores nem dos actores, fazer um filme já é um gesto tão egoísta que se tiver algo de autoterapia deixa de fazer sentido. Mas é claro que há algumas memórias que incluo no filme, não necessariamente factos… antes sensações da adolescência, uma certa angústia e solidão. O medo de estar a descobrir a noite na cidade, a sensação de regressar a casa quando a tua família dorme, os segredos… Tentei transformar algumas dessas memórias em material cinematográfico. 

No entanto, o David não é um adolescente típico…
Sempre que alguém tipifica qualquer coisa o filme perde especificidade. Não quero que o David seja o representante de uma ideia generalizada de adolescência, e precisamente por isso é que esses gestos e a fisicalidade são coisas muito dele. Para mim era importante que o filme não fosse concreto nem a nível geográfico nem de classe social. Ele é um miúdo do subúrbio mas não do bairro social, não tem uma família abastada mas também não é miserável. Não queria que o contexto social falasse mais que ele.  

Nunca roubou uma mota a ninguém, como ele faz no filme?
Na adolescência tive as minhas deambulações, fiz coisas parecidas, lembro-me que pegámos nas motas dos tipos da Telepizza e dávamos umas voltinhas. Não é uma criminalidade muito respeitável mas já é alguma coisa…

Gravar uma longa é muito diferente de gravar uma curta?
Há um lado mais complexo, o lado das angústias de um realizador que pela primeira vez está a fazer um filme, com uma estrutura maior, que envolve mais gente. Esta coisa de ir descobrindo muito do que estou a filmar durante a rodagem é mais difícil numa longa… mover 20 pessoas desta sala para aquela [a distância é de uns cinco metros] é mais complexo do que parece, portanto há esse lado da estrutura, sem dúvida.

Que agora sentiu mais…
Sim, um bocado mais. Por outro lado o tempo de preparação e de rodagem é maior, isso permite que se criem laços. Estive seis meses com o David, e isso é uma eternidade na vida de um rapaz de 14 anos. As coisas transformam-se, a vida e o cinema cruzam-se e o filme fica impregnado destas histórias que acontecem ao mesmo tempo que o filme é feito. De qualquer forma, faço cinema para filmar a intimidade, a história com H grande está nos livros, portanto também proponho uma produção que promove a intimidade entre as pessoas envolvidas. É uma família que está a fazer filmes sobre famílias. Só consigo filmar pessoas com quem no final do dia me apeteça ir beber uma cerveja. 

A linguagem entre o trio dos miúdos é precisa, muito actual…
Muitas vezes trabalhamos as cenas de uma ideia vaga, de uma intuição. Como é que filmamos uma tarde de dolce far niente nas escadas de um prédio e como é que isto que pode ser, do ponto de vista do cinema, mais que um mero momento contemplativo? E eles propõem coisas, muitas vezes as sugestões deles eram mais interessantes que as minhas. Ao fim de duas semanas de rodagem larguei o guião. Num dos dias que filmámos no hospital o David roubou a cadeira de rodas de uma enfermaria e enquanto esperava para gravar o filme começou a dançar com ela. Duas semanas depois pedi que trouxessem uma cadeira para filmarmos aquele beatbox que ele faz na cadeira de rodas, que acho um momento belíssimo. Não é um momento sobre nada mas é muito expressivo. 

É caso para dizer que os miúdos trouxeram muito ao filme. 
Sem dúvida. Há uma coisa muito bonita que eles também trouxeram. Há uma angústia muito presente no filme, mas que tem sempre um contraponto que é uma felicidade juvenil qualquer. Na adolescência a angústia e a alegria estão sempre presentes ao mesmo tempo. Mais tarde estes sentimentos separam-se, cada vez mais. Um adulto tende a reconhecê-los e a separá-los.

Isto leva-nos ao centro da questão: é um filme profundamente realista, onde a realidade se sobrepõe à ficção. 
Tem-me dado muito orgulho perceber que todas as perguntas que me fazem sobre o filme são sobre os miúdos, muito mais que algo ao estilo: “Como é que fizeste aquele plano?” A responsabilidade de ter uma câmara de filmar na mão, que pode ser uma arma quando é mal utilizada, tem precisamente a ver com pôr alguma luz e descortinar a natureza das pessoas que estou a filmar. Acho que é por isso que o filme transmite essa sensação. Se calhar não é a realidade como a conhecemos, mas é a reconstrução de uma nova realidade que faz tanto sentido como a que vemos diariamente.