Sírios com médico de família? Caia o Carmo e a Trindade


Acredito cada vez mais que a internet foi criada para partilharmos fotos de gatinhose as caixas de comentários servem para dar voz aos mais obtusos da raça humana.


Há coisas que me deixam nervosa. Nervosa ao ponto de querer ir à farmácia aviar Xanax, Valium e Lexotan e tudo o mais que conseguir sacar ao farmacêutico sem a devida receita médica. Mas depois lembro-me da anedota do homem bêbado e da mulher feia (ele acordará sóbrio, enquanto ela continuará feia) e sei que nenhuma benzodiazepina resolverá o problema de fundo que me tira do sério. Eu acordaria com os resquícios de químicos (de que não preciso) no corpo, o meu farmacêutico podia vir a ter problemas com a lei e parte significativa da humanidade acordaria tão imbecil quanto se deitara na véspera.

Vem isto a propósito dos refugiados. (Antes de continuar a prosa, ponho as mãos em flor de lótus e faço ommm – ajuda a acalmar a ansiedade e não tem contra-indicações, como os comprimidos.) Os refugiados sírios que já começaram a chegar a Portugal irão ter uma série de ajudas. Bravo. O meu eu interior aplaude de pé e até faz a onda ao saber que há sete mil voluntários que irão abrir as portas das suas casas para os acolher. Continuo a ler interessada a notícia e percebo que as ajudas são significativas: casas e formação pagas, médico de família no prazo de uma semana e dispensa de pagamento de taxas moderadoras se precisarem de recorrer aos serviços de saúde. Estamos bem preparados para recebê-los. Sinto orgulho em ser portuguesa – sentimento cada vez mais raro nos dias que correm – e fico profundamente satisfeita por fazermos parte do grupo de países que está a fazer alguma coisa para minorar esta catástrofe humana. Portugal não é a Macedónia nem a Hungria, onde os refugiados são recebidos com gás lacrimogéneo ou balas de borracha. 

Ainda sinto a alegria a aquecer-me o coração quando chego às infames caixas de comentários. Porque é que elas existem? Porquê? Porquê? E lembro-me daquele cartoon em que alguém diz: “Eu não sou racista, mas…” E o outro boneco tapa-lhe a boca e responde: “Chiu… Nada de bom vem a seguir a um ‘mas’.” Cada vez mais acredito que a internet foi criada para partilharmos fotos de gatos fofinhos (uma foto de um dos meus terá certamente mais shares que qualquer coisa séria que escreva – tudo bem, eles são realmente queridos, não levo a mal) e as caixas de comentários foram criadas para que os representantes mais obtusos da humanidade possam vomitar nelas toda a podridão que têm dentro de si.

Onde é que eu ia? Refugiados. Vamos acolhê-los e dar-lhes médicos de família. Alegria. Aplausos. Caixas de comentários. Vergonha. Mãos em flor de lótus e ommmm… Não consigo lidar com frases do género: “Para os nossos não há nada, mas para os de fora temos tudo” ou “Eu pago impostos e tenho de pagar taxas moderadoras” ou “Mais valia estarmos a ajudar os nossos sem-abrigo”. Pior. Na caixa das notícias relacionadas descubro que há dezenas de petições a correr para que Portugal não receba refugiados sírios e nelas se lêem coisas miseráveis: “Não é justo, sendo mesmo uma afronta aos portugueses que vivem miseravelmente e aos outros sobrecarregados de impostos vários que os refugiados tenham, entre outras benesses, subsídio de integração, habitação e formação pagas.” Afronta aos portugueses é ter que ler coisas destas.

Se esta malta escrevesse “não aos refugiados escurinhos, fora os pretos e abaixo os maricas” eu ficaria igualmente com vontade de lhes dar um estalo. A única vantagem é que eles assumiam o que são: nazis, racistas, xenófobos, homofóbicos e tudo o que a humanidade devia mandar pelo esgoto. Mas não. Estas pessoas fingem ser fixes e estar preocupadas com o vizinho do lado, enquanto se escondem atrás dos seus “mas” e dos seus “desde que”. 

“Se os impostos fossem mais baixos e todos tivéssemos médico de família, então eles podiam vir – desde que não fossem muçulmanos.” “Eu não tenho nada contra os homossexuais mas isso de se poderem casar é um disparate.” “Eu não sou racista, mas era incapaz de ter um filho de outra cor.” Lá está. Nada de bom vem a seguir a um “mas”. 
E nem mesmo estas pessoas, no meio do seu veneno e falta de humanidade, podem acreditar que há uma ligação de causa-efeito. Se não recebermos refugiados, os impostos vão baixar, a crise vai acabar, os sem-abrigo vão desaparecer e os médicos de família vão passar a ser suficientes para todos os portugueses? Claro que não. São problemas distintos e precisam – tal como a crise de refugiados – de solução. 

É como nas urgências de um hospital em que é preciso fazer triagem. Lá porque tratamos primeiro quem teve um AVC, não quer dizer que não se vá assistir ou ignorar quem partiu um braço. 
 
Jornalista
Escreve ao sábado 

Sírios com médico de família? Caia o Carmo e a Trindade


Acredito cada vez mais que a internet foi criada para partilharmos fotos de gatinhose as caixas de comentários servem para dar voz aos mais obtusos da raça humana.


Há coisas que me deixam nervosa. Nervosa ao ponto de querer ir à farmácia aviar Xanax, Valium e Lexotan e tudo o mais que conseguir sacar ao farmacêutico sem a devida receita médica. Mas depois lembro-me da anedota do homem bêbado e da mulher feia (ele acordará sóbrio, enquanto ela continuará feia) e sei que nenhuma benzodiazepina resolverá o problema de fundo que me tira do sério. Eu acordaria com os resquícios de químicos (de que não preciso) no corpo, o meu farmacêutico podia vir a ter problemas com a lei e parte significativa da humanidade acordaria tão imbecil quanto se deitara na véspera.

Vem isto a propósito dos refugiados. (Antes de continuar a prosa, ponho as mãos em flor de lótus e faço ommm – ajuda a acalmar a ansiedade e não tem contra-indicações, como os comprimidos.) Os refugiados sírios que já começaram a chegar a Portugal irão ter uma série de ajudas. Bravo. O meu eu interior aplaude de pé e até faz a onda ao saber que há sete mil voluntários que irão abrir as portas das suas casas para os acolher. Continuo a ler interessada a notícia e percebo que as ajudas são significativas: casas e formação pagas, médico de família no prazo de uma semana e dispensa de pagamento de taxas moderadoras se precisarem de recorrer aos serviços de saúde. Estamos bem preparados para recebê-los. Sinto orgulho em ser portuguesa – sentimento cada vez mais raro nos dias que correm – e fico profundamente satisfeita por fazermos parte do grupo de países que está a fazer alguma coisa para minorar esta catástrofe humana. Portugal não é a Macedónia nem a Hungria, onde os refugiados são recebidos com gás lacrimogéneo ou balas de borracha. 

Ainda sinto a alegria a aquecer-me o coração quando chego às infames caixas de comentários. Porque é que elas existem? Porquê? Porquê? E lembro-me daquele cartoon em que alguém diz: “Eu não sou racista, mas…” E o outro boneco tapa-lhe a boca e responde: “Chiu… Nada de bom vem a seguir a um ‘mas’.” Cada vez mais acredito que a internet foi criada para partilharmos fotos de gatos fofinhos (uma foto de um dos meus terá certamente mais shares que qualquer coisa séria que escreva – tudo bem, eles são realmente queridos, não levo a mal) e as caixas de comentários foram criadas para que os representantes mais obtusos da humanidade possam vomitar nelas toda a podridão que têm dentro de si.

Onde é que eu ia? Refugiados. Vamos acolhê-los e dar-lhes médicos de família. Alegria. Aplausos. Caixas de comentários. Vergonha. Mãos em flor de lótus e ommmm… Não consigo lidar com frases do género: “Para os nossos não há nada, mas para os de fora temos tudo” ou “Eu pago impostos e tenho de pagar taxas moderadoras” ou “Mais valia estarmos a ajudar os nossos sem-abrigo”. Pior. Na caixa das notícias relacionadas descubro que há dezenas de petições a correr para que Portugal não receba refugiados sírios e nelas se lêem coisas miseráveis: “Não é justo, sendo mesmo uma afronta aos portugueses que vivem miseravelmente e aos outros sobrecarregados de impostos vários que os refugiados tenham, entre outras benesses, subsídio de integração, habitação e formação pagas.” Afronta aos portugueses é ter que ler coisas destas.

Se esta malta escrevesse “não aos refugiados escurinhos, fora os pretos e abaixo os maricas” eu ficaria igualmente com vontade de lhes dar um estalo. A única vantagem é que eles assumiam o que são: nazis, racistas, xenófobos, homofóbicos e tudo o que a humanidade devia mandar pelo esgoto. Mas não. Estas pessoas fingem ser fixes e estar preocupadas com o vizinho do lado, enquanto se escondem atrás dos seus “mas” e dos seus “desde que”. 

“Se os impostos fossem mais baixos e todos tivéssemos médico de família, então eles podiam vir – desde que não fossem muçulmanos.” “Eu não tenho nada contra os homossexuais mas isso de se poderem casar é um disparate.” “Eu não sou racista, mas era incapaz de ter um filho de outra cor.” Lá está. Nada de bom vem a seguir a um “mas”. 
E nem mesmo estas pessoas, no meio do seu veneno e falta de humanidade, podem acreditar que há uma ligação de causa-efeito. Se não recebermos refugiados, os impostos vão baixar, a crise vai acabar, os sem-abrigo vão desaparecer e os médicos de família vão passar a ser suficientes para todos os portugueses? Claro que não. São problemas distintos e precisam – tal como a crise de refugiados – de solução. 

É como nas urgências de um hospital em que é preciso fazer triagem. Lá porque tratamos primeiro quem teve um AVC, não quer dizer que não se vá assistir ou ignorar quem partiu um braço. 
 
Jornalista
Escreve ao sábado