“A Hora do Lobo” é o mais recente filme do francês, autor de “O Nome da Rosa” ou “Inimigo às Portas”. Diz-nos que faz os filmes que quer, como quer, e que por isso nem sempre o seu trabalho é bem recebido. Continua a defender o ambiente e faz da paisagem um “actor como qualquer outro”.
Jean-Jacques Annaud é um grande realizador. Esteve em Lisboa como embaixador na Festa do Cinema Francês. É um perfeccionista: para fazer “O Nome da Rosa” demorou cinco anos, nada foi deixado ao acaso. Viu 350 mosteiros para construir o seu próprio. O seu último filme fala do choque do homem e das suas utopias com a natureza e as tradições. A conversa começou pelo princípio.
Quando era jovem vi um filme seu, “A Guerra do Fogo”, e fiquei chocado: havia homens pré-históricos que não sabiam falar inglês. O seu cinema é uma espécie de procura de uma língua universal?
Não o procuro propositadamente, mas penso que o cinema é uma arte universal. É um meio de comunicação visual, passa–se numa forma de linguagem que incide sobre o essencial. É como quando se vê um político na televisão: pode-se não conhecer a sua língua, mas é possível ver se ele é sincero ou nos está a mentir…
Se fosse assim, ninguém se enganava nas eleições.
Tem razão. Mas penso que essa é a grande diferença para com a rádio e a televisão – para mim, a TV é uma espécie de rádio que fala, uma rádio filmada –, o cinema nasceu de contar histórias com imagens. Começou no cinema mudo. Quanto menos entretítulos e legendas havia, porque as pessoas não liam bem, mais sucesso tinha. As raízes do cinema são uma identificação pela situação e pela identificação do comportamento.
Essa empatia com o comportamento é universal?
Pode compreender um lobo da mesma maneira que pode compreender um humano. Um lobo que se apresenta perante si, você compreende imediatamente o que quer. Nós não somos diferentes. Estas são as ferramentas fundamentais do cinema. Eu não estava de acordo, quando era estudante, com a teoria dominante de que fazer filmes era fazer coisas para os intelectuais da Rive Gauche, porque era esse o ideal do cinema. Gostava dos filmes de todos os países. Não somente os americanos, via poucos filmes americanos, mas via muitos japoneses e grandes filmes russos. Faziam-me viajar e davam-me a impressão de que era melhor pessoa quando tinha saído do filme, em relação ao momento em que tinha entrado.
Viajar sempre foi para si muito importante?
Gosto de me colocar em causa em lugares diferentes. Cheguei cá ontem, por exemplo, e isto encanta-me. Como sou francês, percebo a subtileza da língua, gosto dos lugares novos que não conheço e aprendo sempre. Desloco-me e, ao fazê-lo, vejo a humanidade nessas diferenças, e isso motiva-me. Se estivesse todos os dias no mesmo lugar, não aprenderia nada.
Está aqui como embaixador do cinema francês. Disse há pouco que tinha problemas com a ideia generalizada do que devia ser o cinema francês e afirmou uma vez que se sentia mais um francês que fazia filmes que um realizador do cinema francês….
Sim, sim, é verdade. Posso-lhe contar uma histórica anedótica? Se me apresentam, nas entrevistas televisivas, como sr. Jean-Jacques Annaud, o realizador francês, é porque não gostaram do filme; se dizem que é um francês que é realizador, é melhor; se dizem o realizador, é porque gostaram muito. Eu sou francês e não posso escapar a isso, mas tenho um grande respeito pela diversidade cinematográfica. Levei muita pancada em França porque não fazia filmes falados em francês, porque as minhas obras tinham demasiado sucesso no estrangeiro. É muito mau ter sucesso, fui obrigado a esconder-me porque os meus filmes não eram um fracasso.
Muita gente acha que para fazer um filme comercial é preciso fazer cedências na qualidade. O seu cinema tem uma mistura de filmes com sucesso comercial, mas com preocupações ditas espirituais. Como é isso possível?
Parece um silogismo: se um filme tem sucesso, é comercial; se é comercial, não presta. A partir do momento em que se tem sucesso, isso significa que se é mau. Tive de ir para o estrangeiro, porque este tipo de raciocínio é fatigante. Quando eu digo que faço os filmes que me agradam da forma como quero, eles respondem: não é assim que se deve fazer. Tenho essa sorte de ter feito todos os filmes que quis em plena liberdade, é talvez um crime.
Começou na publicidade, isso marcou-o?
Sim, primeiro compreendi que se não gostava de um filme, ele não iria agradar aos outros. Se tinha vergonha do que fazia, isso não resultava. Quando gostava, isso funcionava. Isto deu-me confiança no meu próprio julgamento. Eu não queria fazer publicidade, vinha das escolas do cinema, gostava de Kurosava, Eisenstein e Pudovkin, e meter-me ao serviço dos pneus e dos iogurtes não me parecia bem.
Mas há uma diferença muito grande na sua linguagem nos filmes, existe aí um tempo mais lento, os grandes espaços que não se encontram naturalmente na publicidade.
Sim, mas há uma coisa na publicidade que se aprende por causa da falta de tempo: é fazer quadros significativos. Como dizer coisas em dois segundos.
No seu cinema há uma procura dos grandes espaços virgens: eles ainda existem no nosso mundo ou são só uma memória?
Não, ainda há na nossa terra alguns espaços assim. Mas vejo-o sempre com receio, porque percebo que, depois do filme, isso pode acabar. É terrível. Sei que é um privilégio enorme. No meu último filme, vi aquilo que mostrei, nada foi modificado. Naturalmente, fiz muitas repérages para encontrar os locais, mas eles existem. Por isso é preciso sonhar, esse é o sentido do filme, é dizer não podemos destruir os outros, aqueles que fazem parte, como nós, do equilíbrio da natureza. Para passar essa mensagem é necessário amar a natureza, e para o fazer é preciso vê-la e conhecê-la. É por causa da história que vai ser contada que a beleza e o espaço são importantes. Todas as pessoas, no seu íntimo, sabem que as coisas não estão bem, que não podemos continuar assim, e que não é possível continuar a poluir, como o fazemos com automóveis amigos do ambiente falsificados. Para mostrar o desastre anunciado, é preciso mostrar a paisagem que amamos. A paisagem é, no “A Hora do Lobo”, um actor como qualquer outro. Este é o não dito do cinema, é, neste caso, o apelo para proteger essa coisa magnífica. Pessoalmente, gosto disso. Sinto-me feliz por colocar aí a minha câmara e filmar. É essa felicidade que pretendo transmitir. E o perigo de o perder. Faço isso instintivamente.
Trabalhou neste filme com actores mongóis e chineses. É muito diferente de trabalhar com homens como Sean Connery?
É a mesma coisa. É necessário amar a personagem e gostar do actor que escolhemos. Dar-lhe indicações simples, e ter confiança. Porque ser actor é ser frágil. Se não se tem essa fragilidade, não é possível ser receptivo, será um mau actor. Mas ser frágil significa ter medo de falhar. A nossa função é ser pais. Quando comecei, tinha 22 anos, os actores era muito mais velhos que eu e via-me no papel de ser o pai deles. No início, não gostava dos actores, e agora adoro-os. É um material extremamente delicado, esse é o encanto de fazer filmes.