Carlos Neto. “Estamos a criar uma sociedade de cativeiro para as crianças”

Carlos Neto. “Estamos a criar uma sociedade de cativeiro para as crianças”


Investigador da Faculdade de Motricidade Humana alerta para os perigos de dizer sempre não às crianças por medo de que se magoem. E avisa que cortar-lhes a liberdade impede-as de serem adultos empreendedores.


Carlos Neto, investigador da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, dedicou o último ano de licença sabática a partilhar as suas preocupações em torno de um problema que diagnosticou há 20 anos: o “terrorismo do não”. Diz que é preciso pôr fim a uma cultura em que os adultos, por receios muitas vezes exagerados, negam às crianças todas as hipóteses que têm de brincar, de experimentar, de correr riscos e de aprender com os seus erros. Em tempo de regresso às aulas, o especialista deixa um apelo a pais e educadores: não atrapalhem as crianças.

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Vem aí a escola, o regresso à parte séria da vida para os mais novos. Teme pela qualidade de vida das crianças?
É uma questão de desenvolvimento. A escola não faz mal às crianças. Dá-lhes competências e saberes. Deve dar-lhes a possibilidade de serem curiosos e ferramentas para terem sucesso. Agora a escola é um contexto organizado e muitas vezes põe as crianças demasiado tempo sentadas. E é isso que tem preocupado investigadores e pedagogos: como é que, tendo de estar nesse espaço organizado, podem ao mesmo tempo brincar e experimentar livremente. O que temos defendido é um maior equilíbrio entre actividades formais e informais na escola. E, hoje em dia, o sistema educativo, principalmente dos 3 aos 12 anos – uma fase essencial em que as crianças através do brincar aprendem muita coisa – muitas vezes não tem isso em conta.

Através da brincadeira as crianças aprendem o quê?
A diversidade de situações em que as crianças se colocam permite-lhes adquirir instrumentos fundamentais para a resolução de problemas, para a tomada de decisão e permite-lhes também de-senvolver uma capacidade perceptiva em relação ao espaço físico e em relação aos outros. A investigação tem demonstrado que, quanto mais tempo a criança tem de actividade lúdica e física no recreio, mais capacidade de concentração tem na sala de aula. Já para não dizer que manter o corpo activo é uma forma de combater o flagelo dos nossos tempos que é o sedentarismo. Os recreios podem e devem ser melhor aproveitados. 

Devia haver mais intervalos?
É um assunto que deve ser discutido e dependerá das idades. Mas os estudos sugerem que deve haver vários intervalos e mais distribuídos. Mas quando falo de aproveitar melhor o recreio, é aproveitá-lo enquanto espaço educativo e não pensar que é terra de ninguém, como acontece hoje. Os recreios fazem parte do processo educativo. São essenciais para que o resto da educação funcione.  

Devia haver professores no recreio?
Os estudos indicam que deve haver supervisor mas não tem de intervir. O jogo deve ser livre. E isto leva-nos a outra questão: impera na sociedade uma cultura do medo e uma aversão ao risco. Precisamos que os educadores, tal como os pais, tentem resistir à tentação de proibir as crianças de experimentar e de brincar livremente.

Chama a esse receio o “terrorismo do não”. Não é uma imagem forte?
Sim, mas é preciso percebê-la. Quando me refiro ao terrorismo do não falo das proibições e limitações de linguagem que os adultos utilizam para não permitir que as crianças se confrontem com o risco e situações adversas. Este medo gera nas crianças uma grande insegurança, coagindo-as a não fazer o mais natural na infância, que é um tempo de experimentação, de impertinência, de caos.

Quando começou a instalar-se o terrorismo do não?
Falo disto há 20 anos, acho que foi quando se começou a notar esta tendência.

O que a explicará?
Serão vários os motivos. Um deles é a forma como os media divulgam acidentes, raptos e violações, como se fosse algo muito comum. Isso criou receio na cabeça dos pais. E fomos tendo um modelo de urbanização cada vez mais limitador, com poucos espaços de jogo. Não temos cidades pensadas para as crianças, são desesperadamente adultas. Estamos muito atrasados nesse aspecto em relação aos países nórdicos e da Europa Central. Creio que tem muito a ver também com a nossa má gestão do tempo e falta de equilíbrio entre trabalho e família.

Como assim?
Existe muito pouca harmonização do tempo de família. As crianças só têm tempo para experimentar e brincar se os pais também tiverem: estarem presentes e assistirem é a forma de se sentirem seguros. Tem de haver coragem política para mudar este estado de coisas. Nos países nórdicos entra-se no trabalho às 8h e sai-se às 16. Os pais vão buscar os miúdos à escola de bicicleta. Porque é que isso não acontece cá? Em vez de olhar para este problema os adultos tentam colocar as crianças nas suas superagendas. Brincar é a identidade da infância e isso não está a ser respeitado. É por isso que digo que a escola tem de ajudar, proporcionar essa brincadeira enquanto a sociedade como um todo não muda. Neste momento, com a rua em vias de extinção, os recreios são a única alternativa que as crianças têm.

O que sugere?
Os recreios tem de ser pensados e estimados da mesma forma que as salas de aula. Devem ter equipamentos, superfícies de impacto adequadas, estímulos.

Se tivesse de equipar um recreio, como fazia?
Metia areia, água, árvores, casas em cima das árvores, formas de escalada, elementos que pudessem desencadear do ponto de vista corporal comportamentos com mais atitudes de risco.
Hoje seria preciso os pais assinarem um papel a dizer que autorizam o educando a subir à árvore no intervalo.
Mas não pode ser. Os pais, e os adultos no geral, têm de perceber que as crianças têm uma capacidade muito grande de autocontrolo. A partir dos 4 anos dificilmente têm acidentes. E, além disso, as crianças que não são confrontadas com o risco são as que estão mais propensas a ele. Temos de olhar para esta pandemia do sedentarismo e pensar se queremos mesmo este analfabetismo motor.

Onde nota o analfabetismo motor?
Há imensas crianças com dificuldades motoras de coordenação, desde o saltar ao eixo, ao pé coxinho. Não sabem correr, não sabem trepar. Tudo isto resultou da cultura do medo que impôs regras como não puderem fazer jogos de perseguição como a apanhada ou brincar às lutas. Mas o problema não se nota só nas escolas. Hoje as crianças raramente se confrontam com o desconhecido. Vêem as suas cidades pelo vidro dos automóveis.

Que diferenças se notam quando estes jovens chegam à universidade?
Talvez a Faculdade de Motricidade Humana não seja bom exemplo pois são jovens que foram activos na infância e fizeram desporto, o que não significa que não haja casos de alunos que chegam com uma cultura motora mais pobre. Agora o que se sente no geral é que o estudante do ensino superior é mais imaturo do ponto de vista motor e até emocional mas é mais consistente ao nível cognitivo. É mais culto ao nível cognitivo e menos culto ao nível motor e social. E esse lado é fundamental para exercer o outro. Se uma criança não brincar muito e não for  activa na infância dificilmente poderá ser um adulto empreendedor. Se não foram felizes, se não puderam fazer asneira, se lhes foi dado tudo pronto, não vão resolver problemas e construir uma cultura adaptativa para ter sucesso. 

É melhor visto o estímulo cognitivo do que a brincadeira física?
Sim, o corpo anda completamente esquecido, até com as novas tecnologias.

Vê-as como uma ameaça?
Não. Estão cá e temos de viver com elas. Agora nunca nos podemos esquecer que tem de haver um equilíbrio e que é importante estar em movimento. Isto é decisivo. Imensas investigações têm demonstrado que o jogo e o corpo activo tem um papel fundamental no desenvolvimento do cérebro e das ligações sinápticas.

Devia proibir-se os telemóveis?
O caminho não passa por proibir nem por obrigar. Tem é de haver estímulos igualmente atractivos e possibilidades para as crianças poderem fazer aquilo que lhes é mais natural. Com estas limitações que pomos e deixando, por comodismo, que passem demasiado tempo sentadas, qualquer dia não têm quaisquer conhecimentos motores. Será como ter de ensinar um macaco a trepar às árvores.

O que acontece quando se faz isso a um animal?
Os animais em cativeiro morrem mais cedo, têm mais doenças. Estamos a criar uma sociedade de cativeiro para as crianças e o risco é precisamente esse. 

O que aconselharia os pais a dizerem a eles próprios quando lhes der vontade de dizer “não faças isso”?
Têm de lutar contra a sua insegurança. Têm de perceber se os seus receios têm fundamentos e pesar as consequências E têm de perceber que as crianças têm uma grande capacidade de autocontrolo. Se adiarem a experimentação, só as estão a tornar mais vulneráveis. Os estudos que temos feito mostram que em Portugal as crianças têm muito pouco independência. Quando em 16 países estamos em 14.o lugar, ao lado da Itália, quando países com pior clima dão muito mais liberdade às crianças, isto devia dar-nos que pensar.

Sentiu esse dilema com os seus filhos?
Tenho um filho com 32 anos e nunca impus limitações. Pôde explorar um monte que tínhamos ao pé de nossa casa em Linda-a-Velha. Isto não quer dizer que se deva deixar as crianças fazer tudo ou que não haja disciplina, mas os adultos não podem estar sistematicamente a atrapalhar as crianças. Devem pensar mais na liberdade que tiveram. Os avós, que ainda tiveram mais, muitas vezes hoje são quem mais deixa os miúdos brincar e que lhes dão a liberdade de que precisam.

A crise da natalidade será parte do problema, o facto de haver poucas crianças torna-as um bem mais precioso para os pais?
Talvez. Sabemos que famílias com poucas crianças são mais protectoras. Mas é um problema geral. As crianças hoje, além do sedentarismo, não têm oportunidade de conhecer os sítios onde vivem, de desenvolver a sua identidade territorial.

São mais infelizes?
Do meu ponto de vista sim. Costumo dizer que crianças saudáveis são as que esfolam os joelhos. Não quer dizer que se isso não acontece são umas totós, mas uma criança que nunca fez uma asneira, que nunca se sujou, certamente terá perdido imensas oportunidades de crescimento. As crianças aprendem através de situações inesperadas.

Falou do impacto que isso tem na sua capacidade empreendedora mais tarde. Continuar este terrorismo pode comprometer o desenvolvimento do país?
Acho que sim, teremos seguramente cidadãos menos empreendedores e isso tornará mais difícil conseguir ultrapassar crises e inovar.

Muitos pais multiplicam a agenda das crianças em actividades extracurriculares. É um mal menor?
É positivo, ainda mais se forem diversificadas. Hoje em dia nas escolas há cada vez menos tempo dedicado à Educação Física e Desporto e às actividades artísticas, o que não faz qualquer sentido, e aí pode ser uma solução. Agora carregar a agenda das crianças com actividades e deixá-las sem tempo livre para brincarem ao que quiserem é uma tragédia. É quase trabalho infantil e não resolve nada. É uma falsa solução. Brincar livremente é um direito da criança, previsto no artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança. Diz que a criança tem direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística. Os estados-membros assinaram este artigo e ele tem de ser respeitado em casa, na família e na comunidade.  

Como encara o futuro?
Não devo fazer ficção científica mas obviamente que a evolução não termina aqui. E se hoje temos uma cultura muito aperfeiçoada na cabeça e nas mãos, esquecemo-nos dos pés. Não podemos substituir toda uma cultura motora pela cultura dos dedos. Se não corremos, não nadamos, não dançamos, acho que que se coloca um grande desafio ao que será o corpo humano no futuro.

Teremos mãos maiores?
Se calhar só teremos cabeça e não podemos ir a lado nenhum. [risos] E um corpo sentado e imóvel é o caminho rápido para a doença.