Desde pequena que Gabriela Santomé sonha com as câmaras, a televisão e a objectiva da máquina fotográfica. Natural da Maia, frequenta o mestrado em Cinema e Audiovisual na Universidade Católica do Porto, já produziu curtas-metragens e aspira a voos mais altos. Porém, quis o destino que o seu percurso fosse interrompido em Abril de 2014. A estudante, que se encontrava a produzir um documentário na altura, foi encaminhada de urgência para o Hospital de S. João no Porto, com uma pneumonia em ambos os pulmões.
O diagnóstico inicial acabou por se agravar, com as análises a destapar o pior. Com o “coração despedaçado e os olhos apáticos”, Gabriela soube que tinha leucemia. “Fiquei a olhar para a médica mas não conseguia sentir nada à volta”, revela. Só passados quatro dias assimilou que tinha uma doença. “Comecei a aceitar quando vi que estava num quarto de hospital e estavam lá médicos, enfermeiros e a minha família”, confessa.
Submeteu-se ao tratamento e a um transplante de medula. Estava ultrapassada a primeira fase: a 1.0, que é “a batalha contra o cancro”. Faltava vencer o nível seguinte, “a luta contra os efeitos do transplante, da medicação e da quimioterapia”: a batalha 2.0. Após três meses retida em casa, em isolamento, Gabriela deparou-se com as dificuldades hercúleas que um doente de leucemia tem de enfrentar. “Depois do transplante não podemos tocar em nada que não esteja desinfectado, temos que pensar em tudo desde que saímos da cama até nos deitarmos. Somos bebés conscientes”, explica.
No tédio do cativeiro, a que a doença obriga, Gabriela analisou os obstáculos e decidiu encontrar soluções. Verificou os inúmeros procedimentos médicos, que estavam estipulados numa “folha A4 horizontal, com letras minúsculas”, e resolveu puxar pela cabeça. Começou a etiquetar os objectos e os alimentos que podia e não podia comer e utilizar e empilhou-os na própria cabeça. “Tudo o que escrevia e fotografava se impregnava na minha cabeça e é ela que retrata o cancro.” Depois pegou na máquina fotográfica e começou a acontecer foto atrás de foto.
E depois? Onde colocar toda esta produção? Como vivemos no século xxi, não é preciso ir muito longe, já que as redes sociais estão à mão de semear. Primeiro foi o Instagram, depois o Facebook, com a página “Batalha 2.0 contra a leucemia”. Faltavam apenas as legendas. “Coma legumes, carne e peixe muito bem cozinhados e previamente desinfectados com vinagre numa taça com água”, lê-se junto a uma das fotografias da página. “Coma bolachas individuais e sem qualquer resíduo de frutos secos ou de casca rija”, é outro dos conselhos.
Assim se foram somando, a pouco e pouco, novos episódios, com a sua careca sempre como protagonista. Ora era uma chávena de café – “só feito em casa e com água engarrafada” – ora um belo de um enchido – “pois é, pois é, mas não pode ser, é proibido comer qualquer alimento fumado ou na brasa”.
Um projecto que nasceu para ajudar doentes em situações semelhantes a encontrar “motivação e alegria” e a descobrir hipóteses para, por exemplo, “saber o que fazer nas férias que não envolva praia, piscina nem andar lá fora”. Com mais de 2000 likes no Facebook e cerca de duas centenas de seguidores no Instagram, a batalha assemelha-se a uma espécie de timelapse, que acompanha a evolução de Gabriela, a sua luta diária e os seus pequenos grandes progressos. “Agora poder comer ovos cozidos é uma coisa maravilhosa para mim” e adiciona que já pode também comer saladas e fruta de casca fina, tudo esterilizado previamente com lixívia. “Dar uma trinca numa maçã ou numa pêra é espectacular.”
Além de a ter forçado a reapreciar novamente os pequenos prazeres da vida, Gabriela acredita que todo este processo a tornou mais forte e consciente, ensinando-a a “valorizar as coisas” ao seu redor. “A minha consciência aumentou na mesma proporção da minha tristeza.”
Ao fim de sete meses – em remissão completa – Gabriela saltou para a rua e as fotos foram outras. “A batalha continua, leucemia para a rua!” E aí está ela, em grande estilo, na Ribeira do Porto e, mais à frente, junto a uma piscina. No entanto, ainda não pode mergulhar, nem expor-se ao sol. “Tire fotografias e durma.”
APLL
De vento em popa, a página de Gabriela captou atenções dos media e de organizações como a APLL, Associação Portuguesa de Leucemias e Linfomas, que irá incluir o projecto Batalha 2.0 contra a leucemia num livro, cuja publicação está agendada para Novembro.
A APLL é uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, que foi fundada em 2001 por doentes e familiares. Sediada no Porto, esforça-se por divulgar informação e ainda oferece uma linha telefónica de apoio. Ambiciona dispor de um “número 800, gratuito, mas por falta de verbas ainda não é possível”, confessa a dirigente da associação, Isabel Barbosa.
Além disso, a associação promove eventos, como caminhadas e jantares, que tentam combater o isolamento a que os doentes se vêm sujeitos. Em Setembro, a APLL vai assinalar o mês das doenças oncológicas de sangue com um programa recheado de actividades.
Todos os anos são diagnosticados à volta de um milhar de novos casos de linfomas, estima Isabel Barbosa, presidente da APLL, sendo o número de leucemias um pouco inferior. Isabel admite que existem várias carências a ser resolvidas, principalmente de segurança social, onde existe alguma desinformação. “Os doentes não são bem informados”, garante.
Por sua vez, Gabriela Santomé acredita que existe o máximo de apoio mas deveria haver mais e admite que as diversas alas hospitalares que atravessou enfrentam várias privações. “O povo tem que ajudar o Estado e o Estado tem de ajudar o povo. Se fizermos isto em equipa podemos ajudar os departamentos a salvar mais vidas”, assegura Gabriela.
FUTURO
Terminar o mestrado em Cinema e Audiovisual e enveredar por uma carreira que passe pela produção de conteúdos para cinema e televisão: é este o maior desejo de Gabriela, hoje com 28 anos, que prefere encarar o futuro com optimismo. “Não tenho medo de nada.
Venha o que vier, dei o meu melhor e vou continuar a dar”, afiança.
Ainda se submete a quimioterapia oral, faz medicação para os ossos, toma magnésio e também calmantes, para lidar com a parte psicológica. A guerreira garante que não irá baixar as armas e diz que acredita “piamente em anjos da guarda”. “Eu sei que estão a olhar por nós, portanto não importa que faleçamos. Um dia iremos encontrar-nos. Não sei onde, mas imagino um grande jardim.”
Gabriela está muito contente com o projecto e com o sucesso que está a ter e espera ajudar mais pessoas a “encarar a sobrevivência com uma leitura mais fácil das coisas”, apesar das limitações. Assegura que a batalha fotográfica irá persistir nas redes sociais, com “muita técnica, gosto e malabarismos”. Para finalizar, insistiu em mandar “um grande beijo para Portugal inteiro”. Está entregue, Gabriela.