Companhia Nacional de Bailado. Crónica de um projecto de lei anunciado

Companhia Nacional de Bailado. Crónica de um projecto de lei anunciado


Há mais de dez anos que os bailarinos discutem o seu estatuto profissional. O governo apresentou uma proposta, mas voltou atrás com a decisão.


Foi cerca de uma hora antes de subirem ao palco para mais uma exibição da obra “Pássaro de Fogo”, no TeatroCamões, que o email chegou. Havia finalmente um projecto de lei sobre o estatuto e a idade das reformas dos bailarinos da Companhia Nacional de Bailado (CNB), uma batalha com mais de uma década e que este elenco governativo se havia comprometido a resolver. No entanto, os sorrisos depressa foram substituídos pela revolta, tendo em conta o conteúdo da proposta apresentada pela Secretaria de Estado da Cultura. “Foi um choque enorme. Ficou toda a gente muito nervosa, tivemos de nos ajudar entre nós, para que aqueles que estavam escalados para subir ao palco o conseguissem efectivamente fazer”, recorda José Carlos Oliveira, da Comissão de Trabalhadores da CNB.

O espectáculo aconteceu – perante uma sala esgotada –, mas no dia seguinte os bailarinos da CNB reuniram-se em plenário. Dos 54 presentes, 51 votaram a favor da greve. “Não foi uma decisão fácil porque nós, bailarinos, vivemos dos aplausos do público”, confessa José Carlos Oliveira. “Mas foi uma decisão inevitável. Andavam há dois anos a falar disto e, de repente, fazem-nos chegar um estatuto com alguns pontos inaceitáveis. Há aspectos neste documento que são altamente prejudiciais, sobretudo para os bailarinos mais jovens. É uma total falta de respeito para connosco. Os bailarinos da CNB são responsabilidade do Estado português, a CNBé pública”.

Perante o inevitável, o CENA – Sindicato dos Músicos, dos Trabalhadores do Espectáculo e do Audiovisual deu conta do pré-aviso de greve dos bailarinos da CNB, que, desta forma, se preparavam para não subirem ao palco nos espectáculos já agendados para Almada, Alcobaça e o Teatro São Carlos – Festival Largo, todos durante o mês de Julho.
O documento em questão, o tal que deixou os bailarinos da CNB à beira de um ataque de nervos quando se preparavam para subir ao palco, entre outros aspectos, previa a possibilidade de caducar os contratos com os bailarinos assim que estes atingissem os 38 anos, atribuindo-lhes uma pequena compensação, mas terminando qualquer vínculo com a CNB.

“Mais do que se preocupar com a carreira dos bailarinos do bailado clássico e contemporâneo, [o projecto de lei] procura encontrar formas, mais ou menos, explícitas de pôr termo, prematuramente, às suas carreiras”, lia-se na nota de imprensa, apresentada pelo CENA.

Deixem-nos dançar “O que nós queremos é trabalhar. Se a idade prevista para a nossa reforma são os 55 anos, nós trabalharemos até essa idade, mas têm de nos deixar”, desabafa José Carlos Oliveira, 52 anos de idade e 30 de casa. Actualmente, os bailarinos mais velhos da CNB estão a desenvolver um projecto de serviço educativo, que leva às escolas a peça “A Fada Oriana”, inspirada na obra de Sophia de Mello Breyner Andersen, mas sublinham que foi iniciativa sua. 

A verdade é que, actualmente, os bailarinos da CNB podem reformar-se aos 55 anos, passando a receber uma reforma com uma pequena penalização, que contempla o facto de a carreira dos bailarinos profissionais começar aos 17 anos, ou seja, mais cedo do que a da maioria dos outros trabalhadores. Mas esta, não é, no entanto, a solução ideal, uma vez que um bailarino não consegue dançar profissionalmente até esta idade.Só que a companhia também não tem possibilidade de reconversão de carreira para todos os bailarinos que deixam de estar em condições de dançar. Ou seja, é uma espécie de terra de ninguém.

Na tentativa de resolver este impasse, a Comissão de Trabalhadores já havia proposto à secretaria de Estado um acordo que previa o pagamento de um valor acrescido de TSU, de forma a “anular os custos que a Segurança Social teria com a reforma ainda mais antecipada dos bailarinos da CNB”. Uma solução semelhante à encontrada pela Ópera de Paris, nos tempos de Sarkozy. A secretaria de Estado, no entanto, alega não ter tido conhecimento desta proposta. “A secretaria disse-nos que nunca nos tinham chamado porque negociaram sempre com uma interlocutora, a directora artística da CNB [Luísa Taveira], mas tinham era que falar connosco, os bailarinos”. O i tentou chegar à fala com Luísa Taveira que se mostrou incontactável.

“Este projecto foi mal dirigido desde o início. Foi-nos prometido por este governo que resolveriam a questão do estatuto, mas só agora, com a legislatura a terminar, é que aparece um documento. E um documento que nem sequer foi discutido connosco, os bailarinos”. Entre os bailarinos, e sem quererem dar rosto a estas acusações, existe o sentimento de que a pressa em apresentar este estatuto teve a ver com questões económicas. “Ouvimos dizer que a directora disse que ou a secretaria de Estado aprovava este estatuto ou ela não tinha dinheiro para avançar com a programação que queria”, comentou um bailarino ao i. Curioso é o facto de que, a última greve que teve lugar na CNB, aconteceu numa anterior passagem de Luísa Taveira pela direcção da CNB, como subdirectora de Jorge Salaviza, num mandato de durou entre 1996 e 1999. À data já se discutia o estatuto do bailarino.

Governo muda de rumo Tal qual um bailado, com primeiro e segundo acto, esta crónica de projecto de lei anunciado viu a sua morte em menos de quatro dias.

Conhecido, na 2ª feira à noite, o pré-aviso de greve dos bailarinos da CNB, o secretário de Estado da cultura remeteu qualquer comentário sobre o assunto para a Comissão de Educação, Ciência e Cultura, que teve lugar ontem à tarde. Aí, Jorge Barreto Xavier anunciou que o projecto de lei, que tinha sido desenvolvido com os grupos parlamentares do PSD-CDS/PP, sobre o estatuto dos bailarinos, seria retirado, por se aproximarem as eleições legislativas. No entanto, perante as perguntas do deputado do PCP, Miguel Tiago, o secretário de Estado corrigiu as suas próprias palavras, garantindo que este recuo teve mais a ver com a falta de consenso entre bailarinos e secretaria de Estado do que propriamente com a proximidade das eleições legislativas. Mas reforçando a ideia de que esta situação terá de ser resolvida porque a CNB tem “um grande problema de sustentabilidade”, tendo trinta bailarinos que não dançam e com os quais são gastos anualmente 1,2 milhões de euros.

Apesar do recuo neste projecto de lei ter sido aplaudido por todos os espectros políticos, Barreto Xavier não se poupou às críticas dos deputados do PS, PCP e Bloco de Esquerda por não ter negociado este estatuto com os profissionais da CNB. Algo que Barreto Xavier afiançou não ser verdade, garantindo que esteve “muitas horas a trabalhar com os bailarinos”. Algo que a Comissão de Trabalhadores garante não ser verdade, sublinhando que as negociações aconteceram com a direcção da CNB e não com os próprios bailarinos. “O secretário de Estado discutiu com a directora artística, mas não com os bailarinos e tinha era de ter discutido com os bailarinos pois trata-se da vida deles.

O Governo atirou o barro à parede para ver se pegava, mas não pegou. No fundo, o que queriam era criar aqui uma espécie de regime de precariedade especial e transformar os bailarinos da CNB nos mais precários dos trabalhadores”, acusou o deputado Miguel Tiago, responsável por uma proposta que tinha sido apresentada no início deste mês e que determinava um regime especial para bailarinos da CNB que incluía protecção em acidentes, reforma e a criação de uma Escola de Dança.

Se houvesse um terceiro acto deste bailado, ele permanece ainda desconhecido. Mas há algo que é inegável: não há dança sem bailarinos. “Começámos a dançar ainda crianças e aos 17 anos já somos profissionais. Agora queriam-nos chutar como se fôssemos lixo. Mas não há CNB sem bailarinos”, conclui José Carlos Oliveira.