Estive de férias nas últimas semanas. A Vanessa telefonou-me lá para as minhas férias. O telemóvel tocou quando eu estava numa varanda fantástica, com vista para uma piscina e um pôr-do-sol lindinho (sim, isto é piroso, mas o elogio das férias, como o de outras coisas da vida, é fundamentalmente piroso. Talvez a vida seja toda pirosa e só uns tipos excelentes disfarcem).
– Quando é que voltas?
– Tens mesmo que saber?
Eu gostava de não ter recebido aquele telefonema. Na realidade, preferiria que fosse alguém a tentar impingir-me seguros para cães e gatos.
– Como sabes estou a tentar fazer um “project plan” para o meu casamento por interesse. Preciso de ouvir algumas opiniões, Gostaria que fosses a minha “personal adviser”.
– Eu?
– Sim, tu.
– Oh pá deixa-me acabar as férias primeiro.
– Quando voltas?
– Quarta-feira já vou trabalhar.
– Podemos jantar nesse dia?
– ‘Tá bem.
Peguei outra vez no livro que andava a ler, a “Terapia” do David Lodge. É uma história esplêndida de um guionista que anda às voltas com uma dor no joelho e com a vida e faz terapia cognitiva. Achei que a Vanessa devia ler o livro. Estive quase a ligar outra vez para dizer-lhe que o devia comprar.
Na quarta-feira voltei ao trabalho e acabei a jantar com a Vanessa, num italiano ao pé de minha casa. A mesma pizza para ela, os mesmos tortellini com quatro queijos para mim. Se fosse tudo previsível como os nossos pratos preferidos – ou pelo menos se a Vanessa fosse tão previsível como a escolha das suas pizzas – eu era uma mulher mais feliz. Sei lá.
– Estive aqui a fazer uma lista dos possíveis candidatos a marido por interesse, na lógica duradoura da relação Passos-Portas.
– Mas houve muitas coisas chatas naquela relação. Tens a certeza que queres ir por aí? Chatices sobre chatices, humilhações públicas, desencontros.
– O que me interessa actualmente é a durabilidade. E está provado que o amor não é durável.
– Existem casos que provam o contrário.
– Comigo nunca aconteceu. E se calhar se a coligação fosse baseada num perfeito entendimento entre Passos e Portas não tinha durado tanto tempo. O interesse é que é o motor de um bom casamento.
– Pareces uma das piores personagens de Jane Austen a falar.
– A verdade está toda em Jane Austen. Toda a filosofia do amor ali está certa. Tudo o que veio depois foram só bacoradas.
Infelizmente havia nesta última frase da Vanessa alguma verdade. No século xix Jane Austen tinha fixado as normas do amor romântico, possível, aceitável, gerível. A começar pelo facto de Elizabeth Bennett só ter percebido o quanto amava Mr. Darcy depois de ter visto as suas imensas e gloriosas propriedades.
– Estava a pensar no Zé Manel.
– A pensar no Zé Manel para quê?
– Tu sabes que eu gosto muito do Zé Manel. Ele é um dos meus melhores amigos. Talvez fosse possível conseguir fazer um casamento com ele durar. Seria um casamento por interesse, claro. Mas o facto de ser o meu melhor amigo ajudava, não? Temos os mesmos objectivos de vida – um bocadinho como o Pedro e o Paulo – mas temos a vantagem de ser amigos.
-Casar com o melhor amigo? Queres que o teu marido seja o teu melhor amigo?
Três casamentos depois, tantos anos depois, tantos namorados depois e a Vanessa continuava a não perceber nada de nada.
– Qual é o mal de casar com o Zé Manel?
– Não se casam com os melhores amigos.
– Mas porquê?
No “Mansfield Park” Jane Austen dá a volta a esta situação. A heroína acaba casada com o melhor amigo. Mas a heroína não tem interesse nenhum.
– Apesar de tudo, Vanessa, eu acho que tu tens algum interesse. Mesmo para um casamento por interesse, só uma pessoa sem interesse nenhum casa com o melhor amigo. Não estás a perceber nada do que eu estou a dizer, pois não?
– Não.
– Então não vou explicar.
Os tortellini estavam tão bons que me senti por uns minutos muito feliz, Decidi que no próximo jantar explicaria melhor à Vanessa porque é que um casamento com o Zé Manel estaria condenado ao fracasso.