Por fim, parece que alguém entendeu que há cidadãos que não gostam de se deixar embrutecer continuadamente pelo lixo tóxico com que, em geral, os diferentes canais de televisão presenteiam os espectadores.
Existe, com efeito, um grupo alargado de cidadãos, de todas as classes sociais, que pagam impostos como os outros e que têm, por isso, direito a usufruir de um serviço público de televisão abrangente e de qualidade.
Descobri, depois de "Borgen", a programação da RTP2, a que passei a estar mais atento e de que agora quase não prescindo.
A qualidade cultural da sua programação não reside apenas nos bons documentários e programas informativos que transmite sobre os factos literários, artísticos, sociais e científicos, mas também – e esta é uma questão que não é de somenos importância – nos filmes e séries que actualmente exibe.
Todas as séries que, desde "Borgen" até hoje, a RTP2 vem passando depois das dez horas da noite espelham, com enredos plausíveis, os problemas reais do mundo em que vivemos.
Os telespectadores são, pois, chamados a reflectir sobre eles a partir de ficções que ilustram situações por demais conhecidas, mas nem sempre compreendidas na sua dimensão política e social.
Isso permite-lhes alcançar o funcionamento de alguns dos mecanismos sociais, políticos, religiosos e culturais que geram ou influenciam tais problemas.
Não posso, por isso, deixar de reconhecer, com aplauso, o cuidado de quem selecciona tais séries, qualificando com êxito esse canal de televisão pública.
Com qualidade artística – mas sem embelezamentos ou embustes -, os programas escolhidos tratam de questões da vida quotidiana da sociedade actual que, de outro modo, seriam dificilmente alcançáveis pela informação a que, por norma, acedemos.
Só por isso, o seu visionamento não pode deixar de interessar muitos espectadores que, a contragosto, se haviam visto expulsos do espaço televisivo.
Por tratarem do funcionamento do poder, das relações que ele tece com osmedia e os negócios, da influência que a vida pessoal dos políticos tem na margem de verdade das mensagens que transmitem, dos conflitos institucionais, pessoais e políticos que afectam, também, o trabalho da justiça e da polícia e, bem assim, dos sintomas de degradação social e moral que percorrem as sociedades governadas pela crise e em nome dela, tais séries constituem importantes, úteis e actuais momentos de cultura.
Quase todas reflectem a vida da sociedade de hoje a partir de uma perspectiva criminal e muitas procuram retratar sem tabus as situações comuns da corrupção reinante.
Em muitos casos, são essas situações que originam, de facto, outros crimes e justificam a deriva no comportamento profissional, familiar e pessoal de personagens que, pela sua situação social, supostamente teriam todas as condições para agir de acordo com a lei e as regras da sociedade.
Estas séries contribuem, assim, significativamente para a abordagem da corrupção enquanto fenómeno – que eu diria usual – de uma sociedade em que os valores do bem comum parecem ter soçobrado perante a força sem limites dos interesses egoístas da finança e dos negócios.
Em tais séries não há, por norma, heróis "holiudescos", justiceiros sempre virtuosos ou criminosos e vítimas perfeitos: todos têm algumas virtudes e, quase sempre, muitos defeitos.
Mas isso é a vida, que merece ser exposta e meditada tal como é, e não revelada por via de discursos e relatos fantasiosos ou envolta em vestes fascinantes que apenas procuram disfarçar os seus contornos reais.