Há um ano, por esta altura, Francisco telefonava para o Convento das Carmelitas Descalças de Lucenda. Queria desejar-lhes bom ano, mas ninguém atendeu. Deixou uma mensagem no atendedor de chamadas: “O que andarão a fazer as irmãs para não me poderem atender? Sou o Papa Francisco e queria saudar- -vos neste fim de ano. Vou ver se consigo ligar mais tarde.”
A história foi reproduzida nos jornais de todo o mundo, tal como aconteceu com dezenas de outros gestos inesperados do sumo pontífice. Praticamente um ano depois de ter sido eleito, o estado de graça e o namoro de Francisco com a imprensa mantinham-se intocados. O Papa argentino continuava a ser um sucesso, embora já se fizessem apostas: quanto tempo mais duraria a lua-de-mel mediática? Para alguns observadores, 2014 seria o ano em que o líder da Igreja Católica acabaria, inevitavelmente, por cair no esquecimento natural dos jornalistas. Ou mesmo em desgraça. Até porque os desafios a curto prazo que se apresentavam ao papado deixavam antever dificuldades: a reforma da Cúria, as habituais suspeitas ligadas ao Banco do Vaticano, os resquício do escândalo Vatileaks, os fantasmas da pedofilia. Mas Francisco não só não foi esquecido como conseguiu evitar que novos escândalos se abatessem sobre a Igreja, ao mesmo tempo que se tornou uma figura querida para crentes e não crentes. Um falhanço completo para os que garantiam que determinados gestos de simplicidade do início do papado não passavam de show off e meros truques de marketing.
Francisco é humilde, mas também é inteligente. Os gestos populistas são tão naturais que é difícil acreditar que possam ser pensados ou estudados. Com ou sem marketing, o certo é que 2014 serviu para se afirmar não só como o homem que veio do fim do mundo para edificar uma Igreja pobre e para os pobres, expulsando os infiéis da Cúria, mas também como um líder político com uma palavra forte, ainda que discreta, nas relações diplomáticas mundiais.
Há menos de um mês, por exemplo, soube-se que a intervenção do Vaticano foi decisiva para o histórico reatar de relações entre os Estados Unidos e Cuba – cortadas há mais de 50 anos, quando o Congresso dos EUA impôs o embargo aos cubanos. “Obrigado. Especialmente ao Papa Francisco”, disse Obama ao mundo. Soube-se então que o Papa escrevera, nos últimos meses, a Obama e a Castro convidando-os a resolver questões humanitárias.
Ao mesmo tempo que se empenhava nas relações externas, o Papa continuava a fazer tudo diferente dentro dos muros no Vaticano. A 12 de Janeiro baptizou, na Capela Sistina, o filho de uma mulher solteira e a filha de um casal casado apenas pelo civil. A 25 de Maio, e depois de se ter reunido com o presidente da Palestina, Mahmud Abbas, parou diante do muro que separa Israel da Cisjordânia. Tocou-lhe em silêncio e rezou. Mais tarde afirmou taxativamente que não condena os homossexuais. A 25 de Julho almoçou com os funcionários do Vaticano na cantina do centro industrial. Esperou na fila e, à mesa, conversou sobre futebol e economia com um grupo de funcionários da farmácia vaticana. No mesmo mês reconheceu a Associação Internacional de Exorcistas, que congrega mais de duas centenas de padres católicos que praticam o rito. Aderiu à moda das selfies. Em Março tirou uma com dois noivos e um mês depois fez o mesmo com dois brasileiros anónimos que visitavam o Vaticano. Antes do Verão, em Junho, e quando passava pelo meio da multidão na Praça de São Pedro, deu boleia no papamóvel a um rapaz com síndrome de Down. Francisco fez manchetes, deu entrevistas, deixou-se fotografar, andou no meio das pessoas.
Na segunda metade do ano colheu a simpatia das alas mais progressistas da Igreja e de muitos católicos não praticantes ao convocar a primeira parte do sínodo da família. Depois de enviar um inquérito aos fiéis da Igreja de todo o mundo, Francisco chamou ao Vaticano todos os bispos para discutirem até que ponto a Igreja poderá e deverá aproximar-se da realidade das novas famílias. O documento final confirmou a existência de sensibilidades muito diferentes, no governo católico em relação à eventual abertura a questões como a comunhão de divorciados recasados. Mas ficou claro que o Papa quer que a Igreja seja comandada não a partir de cima, mas das bases. E que compreende os sinais dos tempos.
A reforma na Cúria, silenciosa mas com autoridade, tem avançado. Sem escândalos ou choques mediáticos. O argentino despediu funcionários e religiosos por actos menos correctos, correu com o cardeal Bertone, renovou a comissão de cardeais que supervisiona o banco do Vaticano (o calcanhar de Aquiles da administração da Igreja), forçou demissões e retirou poderes à administração financeira. Há dias enumerou, num discurso diante dos cardeais responsáveis pelos dicastérios da Cúria, as 15 doenças que afectam a administração da Igreja, como o “alzheimer espiritual”, o “sentimento de imortalidade”, “a mundanidade”, “o exibicionismo”, “a vaidade” ou o “terrorismo da má-língua”.
E se com os funcionários de Roma usa uma linguagem dura, quando fala ao mundo Francisco adopta outro estilo. Em Julho deixou dez conselhos para alcançar a felicidade: viver e deixar viver, dar-se aos outros, brincar com as crianças, dar importância à família, ajudar os jovens a ter um emprego digno, cuidar da natureza, esquecer as coisas más, respeitar quem pensa de maneira diferente e procurar a paz. Fala de alegria, de amor e esperança. Desarruma conceitos. Talvez por isso, quase 6 milhões de pessoas quiseram visitá-lo este ano no Vaticano. A 17 de Dezembro, quando fez 78 anos, a Praça de São Pedro encheu- -se e dois mil casais dançaram o tango. Como será 2015? Imprevisível, como Francisco.