A Paródia. Quarenta anos de copos


Dois dias depois do 25 de Abril, Luís Pinto Coelho abria A Paródia. O bar de Campo de Ourique sopra 40 velas no  domingo, mas a decoração continua igual. Clara Silva sentou-se ao balcão onde José Cardoso Pires monopolizava o cinzeiro. Eduardo Martins fotografou “Uma capelinha modesta, inteiramente dedicada à memória de Bordalo, a leste…


Dois dias depois do 25 de Abril, Luís Pinto Coelho abria A Paródia. O bar de Campo de Ourique sopra 40 velas no  domingo, mas a decoração continua igual. Clara Silva sentou-se ao balcão onde José Cardoso Pires monopolizava o cinzeiro. Eduardo Martins fotografou

“Uma capelinha modesta, inteiramente dedicada à memória de Bordalo, a leste de Campo de Ourique.” É assim que José Cardoso Pires descreve “A Paródia”, um dos seus poisos noctívagos, no seu “Livro de Bordo”. Um dos passatempos preferidos do escritor era “monopolizar” o enorme cinzeiro do balcão do bar lisboeta que comemora no domingo quarenta anos. “Enchia-o de beatas até acima para no fim da noite saber quantos cigarros tinha fumado”, conta Filipa Carlos, 37 anos, actual proprietária, tal como o marido, Pedro Baptista, que conheceu na mesa seis do bar, e o sogro, José Baptista.

Os tempos são outros e não se sabe se o cinzeiro que está ao balcão é o mesmo que José Cardoso Pires usava. Como não se sabe se os Rolling Stones visitaram de facto o bar numa noite de concerto em Lisboa, como se diz por aí. As histórias vão escondendo-se dentro da mobília e dentro das caixas de fósforos que forram as paredes de uma das salas do pequeno bar.

Quando se “arrastam móveis”, quando algum antigo funcionário ou cliente mais velho aparece, algumas vão saindo do baú, por exemplo a história das caixas de fósforos. “Quando viemos para o bar, os clientes antigos contaram-nos que estas caixas serviam de mealheiro”, diz Filipa. “Cada cliente tinha a sua e ia pondo lá alguns escudos.”

Abrimos uma caixa ao acaso para ver se tem lá alguma coisa, mas está vazia. “Às vezes quando encontro alguns escudos, ponho moedas nalgumas caixas na esperança de que apareça algum cliente antigo”, conta Filipa. Apesar de já pertencer à terceira geração de proprietários d”A Paródia, Filipa tem a preocupação de conservar a decoração do bar como a encontrou. “Alguns clientes até me costumam dizer: “Não limpe mais, deixe isto como está…”, mas o pó tenho de limpar.”

O bar foi fundado pelo falecido Luís Pinto Coelho – também fundador dos bares Procópio, Fox Trot e Pavilhão Chinês, em Lisboa – a 27 de Abril de 1974, dois dias depois da Revolução. “Antes disso, era uma loja de antiguidades onde o Luís Pinto Coelho recebia os amigos informalmente e fora de horas, muitos deles pessoas influentes que ajudaram na conspiração a favor do 25 de Abril”, recorda Filipa.

Aliás, o bar que pediu o nome emprestado à revista satírica de Rafael Bordalo Pinheiro – e da qual ainda tem vários exemplares na parede – também era conhecido como “o bar da PIDE”. “É que vinham para aqui alguns elementos da polícia política que contribuíram para a revolução”, adianta Filipa. “Eram da PIDE, mas estavam a favor da revolução.”

Quarenta anos depois da fundação, o bar conserva algumas relíquias. E nem estamos a falar das caixas de fósforos. “Quando fizemos obras e mexemos nos tectos falsos encontrámos uma tela que ainda nem sabemos quanto vale”, conta Filipa. Também já aconteceu clientes apaixonarem-se tanto pelos objectos que os quiseram levar para casa – sem pedir autorização. “Já nos roubaram um candeeiro, uma boneca de porcelana e um quadro.” Outros perguntam o preço das caricaturas de Bordalo Pinheiro. “Costumam dizer-me: “Venda-me aquele quadro porque aquele senhor é muito parecido com o meu tio.”” À venda só as bebidas, como as populares margaritas de gengibre (a 6 euros) e as tostas de paio de porco preto, servidas até ao fecho, às duas da manhã.

Furtos e tostas à parte, talvez este seja o bar mais intimista de Lisboa. Filipa recebe os clientes que tocam à campainha com um sorriso e não se acanha em contar a história do bar a quem ali aterra – e outras histórias que vão surgindo entretanto em conversa.

Os clientes distribuem-se por duas salas, mas a segunda só foi aberta em 1976, no espaço de uma antiga mercearia. “Nessa altura dizem-nos que as coisas em termos políticos ainda estavam um bocado conturbadas e então as pessoas de direita sentavam-se na sala da direita e as pessoas de esquerda na sala da esquerda para não se criarem atritos.”

Atritos é coisa que não costuma haver hoje em dia e os assuntos em cima das mesas são outros. Este ano o bar já recebeu uma tertúlia e degustação de cervejas do mundo, uma conversa com João Tordo sobre livros “e tudo o que vos apetecer” e outra com o jornalista Luís Osório sobre a felicidade – “algo em que não acredita”.

A Paródia – Cocktail & Wine Bar, Rua do Patrocínio, 26 B, Lisboa. Todos os dias, das 21h00 às 2h00.