Para onde vai o tempo quando o tempo acaba?


Mário Soares era, entre os últimos resistentes vivos, o construtor fundamental da sociedade portuguesa tal como nos aparece hoje.


Mário Soares era, entre os últimos resistentes vivos, o construtor fundamental da sociedade portuguesa tal como nos aparece hoje. O Portugal democrático tem a sua assinatura. A Presidência da República civil também – Marcelo foi beber a Mário Soares parte da inspiração e, vindo da direita, é nesta instituição o seu legítimo herdeiro.

Como qualquer humano, Mário Soares tinha contradições. Como qualquer humano, cometeu erros – que não o da descolonização, porque só estudando História se consegue perceber que o que aconteceu não tinha alternativa e que, para culpar alguém, já agora, culpe-se Salazar e Caetano, que resistiram até à loucura a dar a independência às ex-colónias. Mário Soares teve coragem quando isso era muito difícil e, com a exceção dos militantes do Partido Comunista (onde ele também militou), eram muito poucos aqueles que eram capazes de dar o corpo às balas e que não se consolavam no “viver habitualmente” que Salazar impunha aos portugueses.

Foi preso várias vezes e, tendo tido uma vida longa, de facto, como lembrava Manuel Alegre, viveu mais tempo em ditadura do que em democracia. Mário Soares teve também uma coragem extraordinária quando foi preciso defender a democracia – isto é, a instituição de eleições livres – contra uma revolução relativamente à qual cada militante de cada partido de esquerda tinha uma ideia diferente. Soares teve coragem na sua última batalha, pelas mudanças na Europa, contra o governo Passos Coelho, pela defesa da Constituição e do diálogo à esquerda. Com Soares parte uma geração de heróis que combateram a ditadura e construíram a democracia quando isso era terrivelmente difícil.

É um tempo que acabou e nunca sabemos para onde vai o tempo quando acaba. Ou, como dizia Sérgio Godinho: “São/ mais de um milhão/ uma legião/ um carrilhão de horas vivas/ quem sabe, dobram juntas/ as dores coletivas, quiçá/ no canto mais pungente que há” Para onde vai o tempo quando o tempo acaba?