As disparidades nunca vêm sós


Querem maior disparidade do que querer crescimento económico nos discursos e ter uma prática em que o investimento público é o mais baixo desde 1999?


Herança dos últimos anos, a destruição da designada classe média aumentou as disparidades em Portugal. Nuns casos porque as despesas eram superiores às receitas e a situação tornou-se insustentável com os cortes, noutros porque o brutal aumento de impostos capturou o rendimento disponível para as despesas básicas, remetendo os cidadãos para um patamar de luta pela sobrevivência. A crise gerou um campo fértil para o aumento das disparidades numa sociedade já tão marcada por dualidades estruturais: os ricos e os pobres; os do sistema e os que estão fora do sistema; ou os do litoral e os do interior.

Agora que dizem ter-se virado a página da austeridade, não há nenhuma razão para continuar a aprofundar as disparidades. Desde logo, entre a conversa política e a realidade da vida concreta das pessoas. Deve ter sido por isso que o Presidente da República, numa mensagem de ano novo pouco vista e pouco comentada, definiu a bitola para 2017: “Tem de ser o ano da gestão a prazo e da definição e execução de uma estratégia de crescimento económico sustentado.”

Querem maior disparidade do que afirmar haver um compromisso com a estabilização do sistema bancário português e permitir que a Caixa Geral de Depósitos esteja há meses sem liderança, envolta em polémicas nascidas da soberba, incompetência e irresponsabilidade? Neste tempo da informação e do escrutínio, como é possível permitir soluções e processos que não são explicados e apostavam tudo na opacidade?

Querem maior disparidade do que querer crescimento económico nos discursos e ter uma prática em que o investimento público é o mais baixo desde 1999; em que os fundos comunitários não fluem para a economia como deviam ou em que os investidores privados são afrontados ou confrontados com incertezas quanto ao papel que a maioria de suporte do governo quer que tenham?

Querem maior disparidade do que o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) inovar com a possibilidade de renovação da carta de condução online e os operadores das concessões de transportes públicos imporem que, para deduzir o IVA da fatura do passe dos transportes, os cidadãos tenham de percorrer um calvário burocrático de formulários e filas nas lojas, porque as máquinas que emitem os títulos não permitem a inserção do número de identificação fiscal? É para dissuadir os cidadãos da dedução ou é mesmo só desfasamento entre a realidade e a decisão política?

A verdade é que há uma disparidade entre a narrativa do “está tudo bem”, da devolução de rendimentos, e a miríade de aumentos que pontuam o início do ano, sorvendo o oxigénio a mais que tinha sido libertado pelo governo. Como é ridículo que, sabendo-se do problema desde setembro de 2016, pareça que o governo português só agora tenha acordado para os problemas antigos e novos da central nuclear de Almaraz, em Espanha, bem perto da fronteira com Portugal e com o rio Tejo a bordejar a instalação atómica. É certo que, em Espanha, o governo era de gestão, mas, em Portugal, o governo foi de inação perante os alertas dos ambientalistas, dos autarcas e das populações.

Também do domínio da disparidade é o discurso da proximidade e da descentralização da gestão dos sistemas de transportes dos dois principais centros urbanos, Lisboa e Porto, quando o Estado, a administração central ou a concessionária Infraestruturas de Portugal não conseguem cumprir com o básico de manutenção e de salvaguarda da segurança rodoviária nas estradas da sua responsabilidade no interior do país. Há questões básicas em que o Estado não pode falhar, não as podendo querer resolver alheando-se das responsabilidades ou fazendo apelos para que os cidadãos não se dirijam aos serviços, como tem acontecido com a saúde. Há dinâmicas supramunicipais que não terão respostas na municipalização em curso.

Entre contradições e disparidades, o indicador de confiança das famílias do Instituto Nacional de Estatística (INE) atingiu em dezembro de 2016 o valor mais alto desde agosto de 2000, mas a confiança dos empresários, em especial a dos da construção e do comércio, continua a cair. Isto é, quem compra está animado; quem vende, nem tanto.

Em tempo de cantar as janeiras, vem–nos à memória a letra de “Natal dos Simples”, de José Afonso, não sendo certo que palavras se aplicam ao momento, se “Vira o vento e muda a sorte/ Por aqueles olivais perdidos/ Foi-se embora o vento norte” ou “Só se lembra dos caminhos velhos/ Quem anda à noite à ventura”. Num caso ou noutro, é tempo de combater as disparidades e assegurar sustentabilidade nas opções políticas.

Notas finais

Vamos cantar as janeiras. A escalada de atos terroristas e tensões políticas evidencia a exigência da missão do novo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Apesar de tudo, o tempo é de esperança. Até mesmo os detratores nacionais terão ao dispor um selo dos CTT que assinala o início de funções.

 

Muita neve cai na serra. Sérgio Monteiro, ex-secretário de Estado de Passos Coelho, foi contratado pelo Banco de Portugal para, por 25,4 mil euros mensais brutos mais IVA, vender o Novo Banco. Se o processo se arrasta, ainda passa de vendedor a comprador, tal é o pecúlio acumulado.

 

Já nos cansa esta lonjura. Tão solícitos a debitar palavrinhas de autoridade moral por tudo e por nada, agora nem piam. Segundo o jornal britânico “The Guardian”, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, nas vestes de primeiro-ministro do Luxemburgo, foi durante anos a principal força de bloqueio dos esforços da União Europeia no combate à evasão fiscal por parte de grandes multinacionais. A denúncia é sustentada em telegramas diplomáticos alemães. Já cansam estas pseudolideranças.

 

Militante do Partido Socialista

Escreve à quinta-feira