No meio da crise dos burquínis, tal era o zelo civilizador de alguns comentadores, fiquei escandalizado que ninguém tenha proposto o bombardeamento das comunidades amish nos EUA. Como é possível em pleno século xxi permitir que haja comunidades que não acreditem no progresso, em que os seus elementos tenham normas morais e de tratamento das mulheres bastante rígidas?
Para um ateu, alguém que não acredita mesmo em Deus, há uma diferença considerável entre defender a liberdade de crença e considerar que o conteúdo das religiões é positivo. Eu não acho que a ideia que as religiões católica e muçulmana têm sobre o sexo em geral, como sobre muitas outras coisas, seja boa, mas isso não me impede de defender que as pessoas que querem viver sob essa moral têm todo o direito de escolher esse caminho e comportamento. Os religiosos, normalmente, têm mais dificuldade em entender o conceito que aquilo que a gente faz na cama, entre adultos e com consentimento, não tem nada que ver com eles. E que a nossa moral não implica a deles. Como se notou com o líder da Juventude Popular, numa genial entrevista ao i, o homem, se chegar ao governo, quer criminalizar o aborto e acabar com os casamentos entre pessoas com o mesmo sexo – era tanto o entusiasmo prosélito que mais umas páginas e o homem chegava ao auto-de-fé.
O problema, nessas coisas, é sempre em que medida essa escolha é livre, condicionada ou obrigada. Voltando aos amish, por muito arcaicas que sejam as suas prática, eles instituíram um período na adolescência em que os jovens praticam a “rumspringa” (literalmente, “correr por aí” em alemão da Pensilvânia): durante um período de um ano ou dois, os jovens são livres de fazerem experiências fora da comunidade: sexo, conduzir, usar aparelhos eletrónicos. Esse período acaba quando o jovem decide sair da comunidade ou batizar-se e manter-se nela.
Todos nós somos filhos das nossas circunstâncias e fruto de muitas heranças e identidades, mas há uma diferença entre ser educado numa cultura e ser lapidado para cumprir determinadas regras. As pessoas que não percebem que há uma diferença entre ser uma mulher obrigada a usar uma burca no Afeganistão e uma francesa muçulmana escolher ir vestida para a praia como quiser confundem o Rossio com a Rua da Betesga. Mas dizer isso não significa que não se possa discutir formas de vestir e o seu significado. Para um ateu, reconhecer que a polícia não pode obrigar uma mulher a despir-se na praia não significa que ache bem que uma religião pregue que as mulheres devem estar tapadas e de rosto escondido.
É preciso perceber que, embora as religiões do livro (Torah, Bíblia, Alcorão) não sejam propriamente progressistas em termos de moralidade e papel dado às mulheres, há diferenças ao longo da história consideráveis. Nem no islão nem no cristianismo as coisas são iguais em todos os períodos históricos e em todas as latitudes: há mais excisão feminina em países católicos, como a Etiópia, do que nos Estados muçulmanos. Há mais eleitas mulheres em determinados países muçulmanos que em muitas zonas do Ocidente cristão. Mas só a cegueira permitiria dizer que a propagação do islamismo wahabita da Arábia Saudita por muitos países islâmicos não foi um retrocesso civilizacional, emparedando e reprimindo as mulheres. Não se pode confundir liberdade religiosa com proibição de discutir a religião, de argumentar contra ela, até de a impedir de oprimir pessoas.
Mas nos incidentes com a polícia nas praias de França não esteve apenas presente a religião, mas também outras questões. Enquanto a polícia obrigava uma mulher a despir o traje que levava à praia, havia pessoas que aplaudiam e gritavam para a mulher: “Vai para a tua terra.” Não aceitar que nenhuma cultura ou religião possa dar um estatuto de menoridade às mulheres, como acontece em algumas zonas onde prevalece o islão e o fundamentalismo cristão e outras religiões, não significa que não se perceba que a islamofobia é uma prática de racismo que quer fazer bodes expiatórios da crise económica, social e política os mais pobres, os imigrantes e os que têm uma outra religião. É uma externalização de um conflito político para a criação de um “outro” que é supostamente exterior à Europa. Uma tática que foi usada com imenso sucesso durante séculos na Europa, com os massacres periódicos de judeus, e que contribuiu para a ascensão do nazismo.
Obviamente, usando até as categorias de um pensador que foi nazi (Carl Schmitt), a construção da política não é feita pela criação de um consenso, mas pela criação de um par amigo e inimigo. A política, e até a democracia – se bem que, sobre esta última, Schmitt defendesse o contrário –, não pode ser a ausência de escolhas e conflitos. A decisão política não é a criação de um santo consenso que contenta todo o mundo, mas o combate por uma decisão que, no melhor dos casos, contentará a maioria das pessoas e desagradará a algumas.
Fazer dos muçulmanos os inimigos significa fazer passar incólumes todos aqueles que são responsáveis pela atual situação de crise e desigualdade na Europa. A aceitação da islamofobia levar–nos-á à criação de sociedades securitárias ou ao domínio de governos de extrema-direita.
É preciso criar uma corrente política popular, intolerante com as desigualdades sociais, que não aceite qualquer situação de discriminação e opressão das mulheres, mas que escolha o inimigo certo. E o inimigo certo são os 1% que ficam com 99% da riqueza do mundo, expropriando a vida a todos os outros.