Numa recente entrevista, na televisão francesa, o filósofo Alain Badiou defendeu que compreender não significa justificar: é preciso perceber até para não perdoar.
É preciso pensar o terrorismo e o fundamentalismo islâmico. Há uma natural tendência para considerar que determinado tipos de ação estão fora da normalidade e atingiram as raias do mal absoluto, e por isso não são sequer pensáveis. Isso é uma estratégia comparável à da avestruz, se não conseguirmos pensar e discutir o nazismo ou o fundamentalismo islâmico, dificilmente o poderemos combater. Dizer isto não significa aceitar a conversa daqueles que nos dizem que um inimigo é alguém de quem a gente não conhece a sua história e não conseguiu ouvir o seu ponto de vista, e que se ou ouvíssemos, perceberíamos as suas razões e ele deixaria de ser inimigo – Por amor da santa, perceber o que quer Hitler não significa aceitar o seu ponto de vista, mas, pelo contrário, ter mais razões para odiar a sua política e o querer derrotar.
No seu recente livro, a propósito dos ataques de 13 de novembro, em Paris, “Nosso mal vem de mais longe – pensar os assassinatos de 13 de novembro”, Badiou defende o seguinte: “Temos de partir de um princípio: nada do que fazem os homens é ininteligível. Dizer: “eu não compreendo”, “eu nunca conseguirei perceber isto”, “eu não posso compreender”, é sempre uma derrota. Não devemos deixar passar nada para o registo do impensável. A vocação do pensamento, se queremos, entre outras coisas, opor-nos a aquilo que declaramos por impensável, é pensar. Bem entendido que há condutas absolutamente irracionais e criminais, patológicas, mas tudo isto constitui para o pensamento um objeto como outro qualquer (…). A declaração de impensável é sempre uma derrota do pensamento, e uma vitória precisamente dos comportamentos irracionais e criminais”.
Dentro deste domínio do pensável, é preciso perceber algumas coisas sobre o fundamentalismo islâmico e sobre os autores dos atentados terroristas:
– Primeiro, o fundamentalismo islâmico é um fenómeno moderno, por muito que o salafismo reivindique um mítico regresso ao passado.
– Segundo, por mais escandaloso que seja para determinados discursos, os autores dos atentados e ataques são na esmagadora maioria dos casos pessoas que sempre viveram e foram educadas no Ocidente.
Não é possível perceber a erupção do Estado Islâmico, no Médio Oriente, sem perceber: o apoio que os Estados Unidos e os seus aliados deram aos combatentes islâmicos no Afeganistão, nos anos 80; a expansão agressiva do salafismo wahabita da Arábia Saudita, maior aliado Ocidental na região, pelo mundo muçulmano; o falhanço dos regimes nacionalistas e laicos árabes; e finalmente o derrube das ditaduras laicas no Iraque e Líbia, e tentativa de fazer o mesmo na Síria, pelos mísseis e tropas dos EUA e dos seus aliados.
A destruição completa dos aparelhos de Estado e das sociedade existentes no Médio Oriente abriu caminho ao cenário “Mad Max” que se vive atualmente na região.
Mas nada disto tinha essa capacidade de contágio e de destabilizar o planeta se o neoliberalismo não tivesse adubado o terreno com o crescimento exponencial das desigualdades e a criação de uma sociedade totalmente guetizada, a partir dos anos 80. Só assim é possível de explicar esta pulsão niilista e suicida de muitos jovens nascidos, criados e educados no Ocidente de aderirem ao Estado Islâmico e de irem morrer por ele.
A existência de um mundo em que 1% da população tem o rendimento do resto dos 99% dos habitantes da terra não torna justo os atos praticados pelo fundamentalismo fascista do Daesh, mas ele não teria a capacidade de atração que tem, se o nosso mundo não fosse crescentemente desigual e se por todo o lado não tivessem a ser construídas sociedades de condomínios de luxo que estão cercadas para além dos muros de segurança por zonas de miséria onde cada vez há menos esperança e apoios sociais.
Os mísseis criaram um vazio de poder no Médio Oriente e o neoliberalismo produziu as condições de desigualdade gritantes que poderão conduzir as nossas sociedades, ditas civilizadas, às explosões de violência dificilmente previsíveis há uns anos, apesar de periodicamente rebentarem tumultos de aviso em grande cidades como Londres e Paris.
Mas há um terceiro grande fator que explica a situação existente. Foi dado espaço político e ideológico ao fundamentalismo, porque não existe no terreno uma corrente política que combata de uma forma agressiva e sem tolerância as desigualdades crescentes existentes no mundo.
Perante este cenário, os governos e os ricos só nos oferecem como política o Estado de Exceção, a guerra eterna e permanente, a construção de novos muros e de novos condomínios fechados que protejam os mais ricos.
A única alternativa a este caminho para a catástrofe é a reconstrução de uma corrente política radical e popular que derrote ambos os fundamentalismos, os dois fascismos gémeos que se alimentam e justificam: o dos coletes bombas e o do neoliberalismo dos drones.