Um dos detalhes que mais tem dificultado o trabalho dos investigadores da Operação Top Secret é os documentos da NATO apreendidos em Roma estarem classificados como “secretos”. Nem procuradores nem inspetores da Polícia Judiciária podem ter acesso a estes dados caso não haja um levantamento do segredo. Em traços gerais, as autoridades têm conhecimento de que se trata de relatórios mais analíticos que a NATO produz com alguma regularidade e que, especificamente neste caso, se debruçam sobre problemas energéticos.
Segundo o i apurou, dentro do envelope que foi selado quando Carvalhão Gil e o espião russo foram detidos, numa esplanada de Trastevere, não constam documentos que comprometam de forma muito grave a segurança de Portugal nem a dos parceiros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
De acordo com fontes ligadas aos serviços secretos, os danos seriam muito graves caso Frederico Carvalhão Gil tivesse, internamente, acesso à “rede cifrada” que liga todos os países da NATO e que “se dedica a pôr em contacto todos os serviços de informação para troca de informações de cariz operacional sobre a atividade de espiões que atuam contra a NATO” – ou seja, explicam, sobretudo Rússia, China e, “eventualmente, a Sérvia”.
Segundo informações recolhidas pelo i, será nesta rede que são colocadas informações relevantes sobre a deteção de espiões estrangeiros nos países da NATO, uma informação determinante para Moscovo saber quem está ou não a ser monitorizado e em que países. A rede aglomera informações recolhidas por todos os Estados-membros e tem um nome, uma designação, comum em todos os países.
Outra fonte conhecedora do funcionamento do departamento de contraespionagem, explica que essa rede reúne a atividade de serviços de informações hostis aos serviços da Nato: “Nessa rede há muita informação operacional, mas vai diretamente do centro de comunicações para o departamento de contraespionagem do Serviço de Informações de Segurança (SIS) e, portanto, são os únicos departamentos com acesso.”
“Se tivesse acesso a esses documentos poderia ser muito complicado, mas como não tinha, os danos são relativamente isolados”, adianta a mesma fonte.
E a essa rede, sabe o i, Carvalhão Gil não tinha acesso e o mais provável é, por isso, que os documentos sobre energia que estavam a ser vendidos a Sergey Nicolaevich Pozdnyakov – por 10 mil euros – sejam relatórios de análise que, apesar de classificados, não têm informação operacional. “Esses relatórios são partilhados por todos os serviços membros do comité de segurança da NATO, como o SIS. Saem cerca de 20 relatórios por mês”, explica ainda.
Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna e antigo diretor do SIS, explica, por outro lado, que o mais lógico é que neste processo não estejam em causa “documentos estritamente militares, de questões militares, uma vez que, no sub-registo NATO que está associado aos serviços de informações, esses documentos não circulam”. Referindo sempre estar a falar de forma genérica, o ex-governante adiantou ainda que, “normalmente, os documentos da NATO que mais interessam aos serviços de informação são os relativos ao terrorismo e com a estratégia antiterrorista”.
Pressões da Rússia já são visíveis Numa altura em que a investigação aguarda autorização para ter acesso aos documentos apreendidos e que, de Itália, ainda não houve decisão sobre a extradição do espião russo, Lisboa começa a sentir a pressão de Moscovo. E não só.
No último fim de semana, o adido de imprensa da embaixada da Rússia em Lisboa, Evgeniy Skobkarev, criticou a atuação das autoridades nacionais e lembrou, em declarações ao “Expresso”, que “os países têm de informar oficialmente as embaixadas da detenção e do pedido de extradição de um cidadão seu”. O diplomata garante que nada disso foi feito pelas autoridades nacionais em relação ao russo detido em Roma.
Esta foi até agora a única face visível da grande pressão que está a ser feita junto de Portugal, mas também de Itália, para que o país não aceite a extradição de Sergey N. P. para Lisboa.
Mas as críticas à Operação Top Secret não se esgotam aqui. Tal como o i noticiou esta semana, há quem entenda que seria muito mais importante perceber o que os russos queriam saber, quais as perguntas que faziam com regularidade ao espião português, do que apenas e só o que foi trocado naquele encontro.
“O que aconteceu em Portugal é visto nos corredores de outros serviços de informações, até nos americanos, com alguma surpresa. Muitos espiões dizem que não entendem como é que não se aproveitou melhor aquela fonte de informação. O Carvalhão Gil até poderia ser detido mais à frente, caso não aceitasse colaborar, mas se colaborasse numa estratégia de desinformação, ou o país lhe perdoava, porque ia ganhar com a ação dele, ou então daqui por um ou dois anos detinha-o”, esclareceu fonte próxima dos serviços portugueses.
Detenção para a troca Caso venha a ser autorizada pela justiça italiana a extradição de Sergey para Portugal, os problemas diplomáticos com Moscovo podem mesmo ser uma realidade. E essa é outra das justificações apontadas por alguns para criticar a detenção e os moldes em que a operação se desenrolou.
“A detenção de um estrangeiro e de um funcionário é muito rara nos serviços de informações. E quando acontece é para haver uma troca com alguém, e Portugal não tem ninguém para dar à troca. Isso vai criar um problema com os serviços de informações russos”, explicou a mesma fonte, lembrando que “Portugal tinha até há pouco tempo uma estação do SIED (secreta externa) em Moscovo e que os russos têm uma estação do SVR aqui em Portugal, e provavelmente a Rússia é, dos países não membros da NATO, o que mais visita Portugal oficialmente.”
Um cenário que Rui Pereira considera ser puramente especulativo, uma vez que nunca um espião português foi detido na Rússia. “Isso coloca-nos num cenário de ficção, tem sentido só nos filmes, não há hipótese efetiva de alguém português envolvido num caso de espionagem na Rússia”, adianta o ex-diretor do SIS.
A Operação Top Secret A investigação tenta agora apurar quais as ligações entre os dois homens e perceber qual a dimensão das trocas de informações – bem como das respetivas consequências.
No encontro de maio, Carvalhão Gil iria receber 10 mil euros pela entrega de informações secretas da NATO, mas muitas outras trocas poderão ter acontecido antes, uma vez que não era a primeira vez que havia registo de encontros entre Sergey e Carvalhão Gil – indiciado pelos crimes de espionagem, violação do segredo de Estado e corrupção.
Além de se estar a investigar a possibilidade de o espião português ter cúmplices dentro do Serviço de Informações de Segurança (SIS), os investigadores pretendem perceber se tinha fontes noutras entidades portuguesas.
10 mil euros e recibo eram para fidelizar
Carvalhão Gil ia receber 10 mil euros pelas informações que tinha em seu poder para vender ao espião russo. A defesa diz que o dinheiro era para constituir uma empresa, um projeto que ambos tinham, e lembra que Carvalhão Gil até passou um recibo que comprovava a receção do dinheiro. O pagamento por informações é um método considerado muito eficaz no mundo da espionagem, mesmo dentro das secretas portuguesas, havendo por norma uma exigência que deixa a fonte ainda mais vinculada e exposta aos serviços a quem passa a informação: a assinatura de um recibo em como recebeu dinheiro. “Para o lado russo, o pagamento é importante para vincular a fonte. Se o Carvalhão Gil aceitar uma vez, fica psicologicamente vinculado àquele ato. E nessa situação pede-se um recibo, mesmo que a fonte assine sem ser com o seu nome. Mas tem de assinar sempre. É metodologia habitual”, explica ao i uma fonte que afirmou ter já usado diversas vezes a técnica.
Russo usou método conhecido do SIS
O recrutamento de pessoas vulneráveis por parte dos serviços russos é algo que o SISjá há muito conhece. Aliás, como é referido no livro “Os Códigos e as Operações dos Espiões Portugueses”, no manual de 1988 do SIS já era dado o exemplo dos soviéticos: “Recrutam muitas vezes entre deslocados, descontentes, pessoas com dificuldades financeiras, vítimas de injustiças, ambiciosos frustrados e com vida doméstica infeliz – neuróticos, homossexuais e alcoólicos.” Quem o conhece revela que Carvalhão Gil se encaixava nalguns pontos. Sentia-se injustiçado nos últimos tempos, mas todos achavam que “as mudanças no seu comportamento eram reflexo apenas de um certo desencantamento e nunca deram a devida atenção”. “É psicologicamente frágil e tem uma vontade de protagonismo do tamanho do mundo”, contam.