A montanha pariu um rato


Não está em causa a competência dos jornalistas do Consórcio Internacional, mas dá a ideia de que houve uma entrada de leão e uma saída de sendeiro


Aos jornalistas não basta serem honestos, têm de parecer honestos. Há uns meses foi anunciada a maior investigação a uma das zonas negras da finança internacional, onde circulam dinheiros que fogem ao fisco, parte do qual é usado em atividades criminosas. Como Brecht já tinha notado, bancos e crimes são vagamente familiares e não se percebe muito bem onde começam uns e acabam os outros. “Pior que assaltar um banco é fundar um”, garantia o dramaturgo alemão.

Em abril deste ano, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação divulgava que tinha tido acesso a um “conjunto de 11,5 milhões de documentos confidenciais da autoria da sociedade de advogados panamenha Mossack Fonseca que fornecem informações detalhadas de mais de 214 000 empresas de paraísos fiscais offshore, incluindo as identidades dos acionistas e administradores. Nos documentos são mencionados chefes de Estado em exercício de cinco países, nomeadamente Argentina, Islândia, Arábia Saudita, Ucrânia e Emirados Árabes Unidos, para além de outros responsáveis governativos, familiares e colaboradores próximos de vários chefes de governo de mais de outros 40 países, incluindo África do Sul, Angola, Brasil, China, Coreia do Norte, França, Índia, Malásia, México, Paquistão, Reino Unido, Rússia e Síria, bem como 29 multimilionários entre a lista das 500 pessoas mais ricas do mundo segundo a revista ‘Forbes’”, segundo reza a entrada da Wikipédia. Nesse grupo de jornalistas estão integrados profissionais de dois órgãos de comunicação portugueses, a TVI e o “Expresso”. Semanas depois, sem muitas notícias sobre a matéria dadas por esses dois órgãos de comunicação social, o semanário da Impresa veio noticiar que tinha dados sobre jornalistas que receberiam dinheiro do “saco azul do GES”(ligado ao banco BES de Ricardo Salgado). Apesar de colocar a notícia na primeira página, nada foi revelado até agora.

Depois de várias insistências para serem conhecidos estes nomes – inclusive por parte do Sindicato dos Jornalistas, que se queixava de que, ao não ser esclarecida a suspeita, ela pesava sobre todos os jornalistas -, o diretor do “Expresso”, Pedro Santos Guerreiro, esclareceu em nota editorial que “O trabalho do ‘Expresso’ cruza duas investigações em curso: a investigação à ES Enterprises, mais antiga, e a investigação internacional Panama Papers, que trouxe novos dados”, salientando que a notícia que motivou o email do SJ “resulta da investigação autónoma à ES Enterprises” e “não está enquadrada no consórcio internacional de jornalistas de investigação aos Panama Papers”.

Aliás, “a lista de alegados pagamentos não está nos Panama Papers. Está no Ministério Público. E ela resulta de várias fontes, incluindo as autoridades suíças”, refere o “Expresso”.

“O critério editorial do ‘Expresso’ em relação à existência de jornalistas na lista foi é e será rigorosamente o mesmo usado em relação a todas as profissões referidas. Retirar qualquer uma delas seria fazer uma diferença de classe. Assim, escrevemos sobre a existência de ‘mais de uma centena de nomes que constam nessa lista de várias páginas’ que ‘incluem várias pessoas influentes’, ‘políticos’, ‘pagamentos durante vários anos a gestores do BES e da Portugal Telecom’, ‘ex-gestores, autarcas, funcionários públicos, gestores, empresários e jornalistas’”, adianta. Esta declaração foi feita a 28 de abril passado. Mais de um mês depois, nada se sabe sobre o assunto.

A indicação de Pedro Santos Guerreiro de que esses dados só seriam divulgados quando devidamente cruzados e investigados é de bom tom, não faz mais que a sua obrigação de jornalista competente, mas talvez nesse caso não devessem ter sido matéria de notícia nem de manchete. Publica-se quando se tem e sabe, não se anuncia o que se pode nunca vir a publicar. Até porque as relações da comunicação social com o grupo Espírito Santo prestam-se a que os cidadãos venham a pensar que não se publica, não porque se não tem, mas porque se está a proteger os envolvidos. Não foram poucos os prestigiados responsáveis editoriais da comunicação social que teceram loas ao insigne banqueiro e que aconselharam, mesmo durante o afundamento do Titanic, que os incautos cidadãos continuassem a apostar no BES.

Relembremos uma famosa história sobre os papéis da independência de certo jornalismo. O escritor basco Joseba Sarrionandia, o único que conheço que fugiu da cadeia dentro das colunas da aparelhagem de um concerto, manteve um diário na cadeia onde escrevia algumas reflexões ao longo dos dias que passavam. São provavelmente sobre estes dias atrás das grades este seu poema: “El viagero se aventura a través del laberinto/ aunque apenas sí recuerda cuándo ni por dónde entró./ Supone que el camino ha de ser un laberinto,/ pues adivina en lo nuevo reflejos del ayer./ Mas no son reflejos amables, son vástagos del miedo/ pues le revelam que cae, que se derrumba hacia el centro./ Pero hay un centro acaso?/ No cae hacia los bordes?”

O tradutor de Fernando Pessoa e Jorge de Sena chamou ao seu diário de prisão “Não sou daqui” – profética afirmação que lhe permitiu escapar-se da cadeia (mas essa é outra história). Nesse livro tem um ilustrativo apontamento, misto de citação de outras fontes, sobre jornalismo e jornalistas:

“Napoleão Bonaparte esteve recluso na ilha de Elba desde que abdicou em Fontainebleau em abril de 1814 até que na primavera de 1815 se juntou ao seu exército e decidiu voltar a Paris.

Os títulos do diário parisiense ‘Moniteur Universel’ durante todo aquele mês de março são assombrosos, pois oferecem um testemunho sem igual do avanço do ex-imperador:

9 de março: ‘O monstro escapou ao seu desterro.’

10 de março: ‘O ogre corso desembarcou no cabo Jean.’

11 de março: ‘O tigre sangrento apareceu na zona de Gap. Para aí se dirigem os exércitos para deter o seu avanço.’

12 de março: ‘O monstro chegou à cidade de Grenoble.’

13 de março: ‘O tirano está agora entre as cidades de Grenoble e Lyon.’

18 de março: ‘O usurpador ousou chegar até a um lugar a 60 horas de marcha da capital.’

19 de março: “Bonaparte aproxima-se em passo veloz, mas é impossível que entre em Paris.’

20 de março: “Napoleão chegará amanhã às muralhas de Paris.’

21 de março: “O Imperador Napoleão está em Fontainebleau.’

22 de março: “Ontem pela tarde, sua Majestade o Imperador fez a sua entrada pública no seu palácio. Nada pode superar este regozijo universal.’

Publiquem lá os papéis do ogre, sff.

Jornalista


A montanha pariu um rato


Não está em causa a competência dos jornalistas do Consórcio Internacional, mas dá a ideia de que houve uma entrada de leão e uma saída de sendeiro


Aos jornalistas não basta serem honestos, têm de parecer honestos. Há uns meses foi anunciada a maior investigação a uma das zonas negras da finança internacional, onde circulam dinheiros que fogem ao fisco, parte do qual é usado em atividades criminosas. Como Brecht já tinha notado, bancos e crimes são vagamente familiares e não se percebe muito bem onde começam uns e acabam os outros. “Pior que assaltar um banco é fundar um”, garantia o dramaturgo alemão.

Em abril deste ano, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação divulgava que tinha tido acesso a um “conjunto de 11,5 milhões de documentos confidenciais da autoria da sociedade de advogados panamenha Mossack Fonseca que fornecem informações detalhadas de mais de 214 000 empresas de paraísos fiscais offshore, incluindo as identidades dos acionistas e administradores. Nos documentos são mencionados chefes de Estado em exercício de cinco países, nomeadamente Argentina, Islândia, Arábia Saudita, Ucrânia e Emirados Árabes Unidos, para além de outros responsáveis governativos, familiares e colaboradores próximos de vários chefes de governo de mais de outros 40 países, incluindo África do Sul, Angola, Brasil, China, Coreia do Norte, França, Índia, Malásia, México, Paquistão, Reino Unido, Rússia e Síria, bem como 29 multimilionários entre a lista das 500 pessoas mais ricas do mundo segundo a revista ‘Forbes’”, segundo reza a entrada da Wikipédia. Nesse grupo de jornalistas estão integrados profissionais de dois órgãos de comunicação portugueses, a TVI e o “Expresso”. Semanas depois, sem muitas notícias sobre a matéria dadas por esses dois órgãos de comunicação social, o semanário da Impresa veio noticiar que tinha dados sobre jornalistas que receberiam dinheiro do “saco azul do GES”(ligado ao banco BES de Ricardo Salgado). Apesar de colocar a notícia na primeira página, nada foi revelado até agora.

Depois de várias insistências para serem conhecidos estes nomes – inclusive por parte do Sindicato dos Jornalistas, que se queixava de que, ao não ser esclarecida a suspeita, ela pesava sobre todos os jornalistas -, o diretor do “Expresso”, Pedro Santos Guerreiro, esclareceu em nota editorial que “O trabalho do ‘Expresso’ cruza duas investigações em curso: a investigação à ES Enterprises, mais antiga, e a investigação internacional Panama Papers, que trouxe novos dados”, salientando que a notícia que motivou o email do SJ “resulta da investigação autónoma à ES Enterprises” e “não está enquadrada no consórcio internacional de jornalistas de investigação aos Panama Papers”.

Aliás, “a lista de alegados pagamentos não está nos Panama Papers. Está no Ministério Público. E ela resulta de várias fontes, incluindo as autoridades suíças”, refere o “Expresso”.

“O critério editorial do ‘Expresso’ em relação à existência de jornalistas na lista foi é e será rigorosamente o mesmo usado em relação a todas as profissões referidas. Retirar qualquer uma delas seria fazer uma diferença de classe. Assim, escrevemos sobre a existência de ‘mais de uma centena de nomes que constam nessa lista de várias páginas’ que ‘incluem várias pessoas influentes’, ‘políticos’, ‘pagamentos durante vários anos a gestores do BES e da Portugal Telecom’, ‘ex-gestores, autarcas, funcionários públicos, gestores, empresários e jornalistas’”, adianta. Esta declaração foi feita a 28 de abril passado. Mais de um mês depois, nada se sabe sobre o assunto.

A indicação de Pedro Santos Guerreiro de que esses dados só seriam divulgados quando devidamente cruzados e investigados é de bom tom, não faz mais que a sua obrigação de jornalista competente, mas talvez nesse caso não devessem ter sido matéria de notícia nem de manchete. Publica-se quando se tem e sabe, não se anuncia o que se pode nunca vir a publicar. Até porque as relações da comunicação social com o grupo Espírito Santo prestam-se a que os cidadãos venham a pensar que não se publica, não porque se não tem, mas porque se está a proteger os envolvidos. Não foram poucos os prestigiados responsáveis editoriais da comunicação social que teceram loas ao insigne banqueiro e que aconselharam, mesmo durante o afundamento do Titanic, que os incautos cidadãos continuassem a apostar no BES.

Relembremos uma famosa história sobre os papéis da independência de certo jornalismo. O escritor basco Joseba Sarrionandia, o único que conheço que fugiu da cadeia dentro das colunas da aparelhagem de um concerto, manteve um diário na cadeia onde escrevia algumas reflexões ao longo dos dias que passavam. São provavelmente sobre estes dias atrás das grades este seu poema: “El viagero se aventura a través del laberinto/ aunque apenas sí recuerda cuándo ni por dónde entró./ Supone que el camino ha de ser un laberinto,/ pues adivina en lo nuevo reflejos del ayer./ Mas no son reflejos amables, son vástagos del miedo/ pues le revelam que cae, que se derrumba hacia el centro./ Pero hay un centro acaso?/ No cae hacia los bordes?”

O tradutor de Fernando Pessoa e Jorge de Sena chamou ao seu diário de prisão “Não sou daqui” – profética afirmação que lhe permitiu escapar-se da cadeia (mas essa é outra história). Nesse livro tem um ilustrativo apontamento, misto de citação de outras fontes, sobre jornalismo e jornalistas:

“Napoleão Bonaparte esteve recluso na ilha de Elba desde que abdicou em Fontainebleau em abril de 1814 até que na primavera de 1815 se juntou ao seu exército e decidiu voltar a Paris.

Os títulos do diário parisiense ‘Moniteur Universel’ durante todo aquele mês de março são assombrosos, pois oferecem um testemunho sem igual do avanço do ex-imperador:

9 de março: ‘O monstro escapou ao seu desterro.’

10 de março: ‘O ogre corso desembarcou no cabo Jean.’

11 de março: ‘O tigre sangrento apareceu na zona de Gap. Para aí se dirigem os exércitos para deter o seu avanço.’

12 de março: ‘O monstro chegou à cidade de Grenoble.’

13 de março: ‘O tirano está agora entre as cidades de Grenoble e Lyon.’

18 de março: ‘O usurpador ousou chegar até a um lugar a 60 horas de marcha da capital.’

19 de março: “Bonaparte aproxima-se em passo veloz, mas é impossível que entre em Paris.’

20 de março: “Napoleão chegará amanhã às muralhas de Paris.’

21 de março: “O Imperador Napoleão está em Fontainebleau.’

22 de março: “Ontem pela tarde, sua Majestade o Imperador fez a sua entrada pública no seu palácio. Nada pode superar este regozijo universal.’

Publiquem lá os papéis do ogre, sff.

Jornalista