Quando a Leonor me viu a tomar café na esplanada, reparei que hesitou em me cumprimentar. Explico melhor. Ela vinha a andar pela rua, viu-me, acenei-lhe, ela parou um bocadinho, depois retomou o passo, depois parou outra vez. Fiquei de sobreaviso: algo se estava a passar, pois ela era sempre tão espontânea, tão natural… e não era natural nela ficar ali no meio da rua, faz que anda mas não anda, como se tivesse medo de alguma coisa. Convém esclarecer que a Leonor tem 17 anos e anda no 12.o. Quer ir para Medicina Veterinária, foi minha paciente e é filha de uns amigos meus.
“Leonor!”, chamei-a. Ela olhou para mim com um ar de quem é apanhado em flagrante e sentiu-se na obrigação de vir ter comigo. “Olá!”, disse com voz sumida e um sorriso amarelo. Retribuí-lhe o sorriso mas sem a coloração, e puxei a cadeira ao lado da minha para ela se sentar. Como faz alguma cerimónia, quanto mais não seja pelo facto de eu ser da geração dos pais e ter sido médico dela, sentou-se e ficou hirta, com um ar muito colegial, a um tempo tímido e angustiado e, principalmente, muito pouco à vontade.
“Leonor”, disse, ao vê-la silenciosa, “o que queres tomar?”
“Nada”, respondeu num sussurro e, depois, vendo que se calhar poderia ser mal interpretada e passar por malcriada, corrigiu: “Pode ser um ice tea.”
Sei o que estava a causar aquela ansiedade. Sei porque os pais dela já me tinham dito quando o pai me mandou um mail na semana passada: “Não sei o que aconteceu à Leonor este ano. Foi-se abaixo nas notas e assim não vai conseguir entrar para Veterinária. Eu e a mãe estamos preocupados. Acho que ela está a entrar em parafuso com o estudo e as matérias, mas já declarámos este ano como um ano perdido. Paciência, é o destino.”
Pedi o ice tea para a Leonor e uma cerveja para mim, e resolvi entrar “a matar”. Ou melhor, achei que tinha muita coisa para falar com ela e não queria estar a perder tempo com conversa vagamente hipócrita, do género “Então, Leonor, está tudo bem?” ou “Muito estudo?”. Ia embaraçá-la ainda mais e, provavelmente, perder uma boa ocasião de abrir as portas para uma conversa a sério.
“Leonor, já sei que andas aflita com os estudos e com o facto de os exames se estarem a aproximar…” A princípio tentou negar e protestar, mas rapidamente percebeu que eu não estava ali para conversa fiada, de maneira que aceitou e disse:
“É. Acho que não vou conseguir.” Fez um breve silêncio e exclamou com voz francamente triste mas resignada: “Mas não faz mal. Para o ano há mais!”
Senti-me, eu também, triste. Mas depois de uns escassos segundos vi que não estava triste. Estava mas era furioso. Furioso não com a Leonor, claro, mas com este sistema educativo que obriga excelentes alunas como ela – excelentes do ponto de vista académico e humano, com vastas competências sociais e escolares, que faz voluntariado numa associação de proteção de animais, que desde sempre mostrou vocação para seguir a carreira de médica veterinária – a aceitar a priori que não vai seguir a vida profissional que deseja, o que lhe dá cabo da autoestima, só pelo facto de, apesar do seu amor pelos animais, não ter apetência para “cavalo de corrida”. Mas já que esse é o sistema que temos e já faltava muito pouco para os exames, decidi remar contra a maré de desânimo que se estava a instalar naquela adolescente: “Não, Leonor. Tu vais conseguir, macacos me mordam. Pelo menos, não digas que não consegues antes de tentares. E vais tentar com todos os teus trunfos. Vais organizar a tua cabeça, a tua vida, os teus estudos e estudar muitíssimo estes dois meses, ai isso vais, mas convence-te de que consegues entrar em Veterinária, sobretudo se conseguires rentabilizar todo o teu tempo e todas as tuas potencialidades. Não te quero ouvir mais a dizer que não consegues. Só depois dos exames e de saírem as notas e as listas. Se não conseguires, não há de ser por não te teres esforçado e, pelo menos, ficas com a satisfação de teres feito o que estava ao teu alcance.”
Disse isto de um fôlego e ela olhou para mim com os olhos esbugalhados. Acho que não me imaginava capaz de um discurso emocional deste tipo, devia pensar que eu sou um careta qualquer, da geração dos pais, que já não se entusiasma com as vitórias e derrotas do dia-a-dia e que ignora o drama de tantos e tantos jovens que veem os seus sonhos destroçados por um sistema de filtros baseado em classificações de momentos avaliativos episódicos, e não em apetências e competências.
A Leonor sorriu, feliz, e disse: “Ainda bem que alguém me diz isso! Ainda bem que alguém acredita!”, e, depois de uma breve pausa: “É que os meus pais já aceitaram que eu não vou conseguir entrar. E como acha que eu devo fazer?”
Não lhe quis propriamente dar receitas, até porque não tenho nenhuma varinha de condão nem bola de cristal que me digam o que é melhor para cada pessoa – cada um descobrirá isso em si mesmo –, mas lá chegámos a consenso sobre umas tantas ideias e dicas práticas sobre os estudos e ainda ali ficámos a conversar sobre outras coisas provavelmente muito mais interessantes, mas também provavelmente bastante menos realistas no que respeita ao problema em questão.
Quando nos despedimos, exclamou:
“Vou fazer como disse!”
“O não está garantido, o sim conquista–se!”, exclamei.
Foi assim. E ao acabar de saborear a minha cerveja, esperei sinceramente que ela conseguisse, porque merece e porque o país precisa de veterinárias como a que a Leonor pode vir a ser, se ela se esforçar e não assumir uma atitude derrotista, e se este sistema educativo obsoleto não for ainda tão mau e tão injusto como às vezes penso que é…
P.S.: Completa-se um ano desde o primeiro “passeio” deste “cão”. Obrigado, Luís Osório e Vítor Rainho, pela confiança. Sinto este espaço como um espaço de liberdade, sem qualquer interferência editorial. Obrigado a toda a equipa que me ajuda a “passear o canídeo”, e por cá continuarei enquanto o bicho precisar de passeios…
Pediatra.
Escreve à terça-feira