Todo o edifício legal aprovado assenta na natureza gratuita do negócio jurídico em causa. O diploma não deixa margem para dúvidas, proibindo “qualquer tipo de pagamento ou doação de qualquer bem ou quantia dos beneficiários à gestante de substituição”, esclarecendo ainda que “para evitar formas de pagamento dissimulado ou de chantagem sobre uma possível gestante de substituição (…) não é permitida a celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição quando existir uma relação de subordinação económica, nomeadamente de natureza laboral ou de prestação de serviços, entre as partes envolvidas”.
Sendo gratuito, o regime jurídico proposto pelo BE assenta no altruísmo, boa vontade e generosidade de uma mulher que, durante nove meses da sua vida se dispõe, em prol da felicidade alheia, a suportar as “maleitas” que a condição implica: azia, enjoos, inchaços, indigestão, cãibras nas pernas, hemorroidas, dor de costas, entre outras. A mesma mulher que, nascida a criança, é obrigada, por força desta lei, a renunciar aos deveres próprios da maternidade mesmo que o contrato venha a ser declarado nulo, numa aberração jurídica que a instrumentaliza em favor dos “beneficiários”.
O mesmo BE que entende que o trabalho voluntário é uma “treta”, apenas tolerado num cenário idílico de pleno emprego, oferece-nos uma irónica instrumentalização do altruísmo que se deixa alugar para satisfazer uma egoísta obsessão pela filiação genética. Não obrigaria a coerência a que o BE só defendesse semelhante solução num cenário de inexistência de crianças institucionalizadas? A resposta é óbvia, mas a coerência – e, já agora, um diploma que pelo menos respeite uma decente construção jurídica, já que a ética pode ser votada – não é algo que os cândidos deputados, que receiam não ser vistos como progressistas, sejam capazes de exigir a um partido como o BE. Partido esse que nos ensina que há um altruísmo bom – o de uma mulher que gratuitamente se dispõe a instrumentalizar o seu corpo tendo como única recompensa a felicidade de outra mulher – e um altruísmo mau – aquele que é espontâneo, que não é imposto por lei e que não obriga a renunciar a um dever, dever esse que naturalmente, por força do parto, é um direito seu.
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